Extraído
do Capítulo IV do Livro de Christos Yannaras, O Abecedário da Fé.
Christos ou Chrestos Yannaras Giannaras, (em grego: Χρήστος Γιανναράς), é Professor Emérito de Filosofia da Universidade Panteion de Ciências Sociais e Políticas, em Atenas; é um filósofo e teólogo leigo da Igreja Ortodoxa Grega.
Dr. Yannaras nasceu em 10 de abril de 1935, em Atenas, na Grécia. Ele estudou teologia na Universidade de Atenas e Filosofia na Universidade de Bonn, na Alemanha e em Paris, na França. Doutorou-se em Filosofia pela Faculdade de Teologia da Universidade Aristóteles de Salónica, na Grécia e pela Faculté des Lettres et Sciences Humaines da Universidade de Sorbonne, em Paris. Além de outras honrarias, o Autor foi eleito membro da Sociedade Helênica.
A principal área de trabalho do Professor Yannaras se dá no estudo e pesquisa das diferenças entre a cultura grega e a filosofia ocidental europeia e a tradição. Estas diferenças não se limitam apenas a nível teórico, mas também definem um modo (práxis) de vida.
1. A concepção científica
do mundo
Para
o homem que nega ou repulsa as questões de ordem metafísica e que não crê numa
possível experiência da revelação pessoal de Deus, o mundo e a realidade
material tornam-se, muito geralmente, um refúgio ou um álibi que torna
permitido fugir do problema de Deus. Ele invoca as certezas da física para
provar que as dissertações da metafísica não são nem certas, nem dignas de fé.
Ele recorre à claridade das medidas quantitativas para evitar a complexidade dos
defeitos qualitativos que controlam a vida.
Decerto,
o conhecimento da realidade física parece objetiva, imediatamente controlável,
acessível a toda inteligência individual. Os fenômenos físicos são sensíveis,
tangíveis e podem se medir, se traduzir em relações matemáticas e se
interpretar logicamente. A experiência histórica, sobretudo durante os dois
últimos séculos, mostrou que a inteligência humana pode sujeitar a realidade
física, quer dizer, decifrar seus mistérios, contradizer as forças da natureza a
fazer face às necessidades e desejos do homem, cuja vida adquire assim a
facilidade, o bem-estar, os usufrutos.
É
desta maneira, que em nossos dias, o mito do conhecimento eficaz se instaurou –
a “ciência” por excelência. É inegável que, graças a ela, o homem escruta hoje
tão bem os tanto os espaços infinitos como as partículas materiais mais
ínfimas; pelo seu poder, ele conseguiu abolir a distância na superfície do
globo, dominar as doenças, aumentar a duração da longevidade humana. O homem
pode então facilmente se orgulhar e crer que ele consegue hoje, graças à
“ciência”, atingir o que procurava de maneira vã obter outrora pelas orações
dirigidas a Deus. Se ele ainda não resolveu todos os seus problemas, certo está
de o fazer em breve, visto o ritmo do progresso científico. Através de seus
jornais de difuso popular, certos editores imaginativos cultivam junto de seus
leitores – ainda mais inocentes – esta certeza da “ciência” toda-poderosa em
direção da qual eles dirigem todo problema ou toda questão do homem que fica
sem resposta. Na América, podemos desde já, medindo uma participação financeira
elevada, assegurar a abolição definitiva da morte, vitória que a “ciência”
obterá em alguns anos. Para isso, é-nos suficiente, daqui acolá, permanecer em
estado de congelamento, pronto a retomar vida. Sem dúvida alguma, esta nova
divindade impessoal, a “ciência” propriamente mitificada, tornou-se, em nossos
dias, o ópio das massas - responsável por seu entorpecimento metafísico.
Necessário,
todavia, nos é reconhecer, para sermos mais exatos, que a super estimação das
capacidades da ciência e a busca, no campo da física, de argumentos destinados
a escorar o ateísmo, pertencem, sobretudo ao século passado. Este sintoma,
hoje, sobrevém menos nos laboratórios científicos do que na imaginação dos
ignorantes cujos circuitos comerciais aproveitam amplamente, entretendo o mito
do todo-poder e das capacidades miraculosas da “ciência”.
Em
nossa época, o progresso das ciências veio, decerto, esclarecer o mistério do
mundo que nos cerca e responde as questões que permaneciam por tantos séculos
sem respostas. Mas ele veio também a reerguer o caráter relativo de nossos
conhecimentos e a tão fraca positividade de nossas ciências ditas
“positivistas”.
Não
podemos dar, aqui, lugar a uma análise detalhada desta constatação. Lembremos
simplesmente que as novas conclusões científicas que surgiram no curso de nosso
século exigem que renunciemos à certeza do conhecimento garantido pelos nossos
sentidos (sensos) ou pelas constituições de nossa lógica. Esta certeza fora
principalmente exprimida pela geometria de Euclides e a física de Newton. No
entanto, estas duas elaborações fizeram prova de uma capacidade limitada e
insuficiente para interpretar a realidade do mundo. Elas se revelam seguramente
úteis À interpretação de nossa experiência sensível limitada. Mas sua validade
não se estende nem ao domínio do infinitamente grande, nem àquele do
infinitamente pequeno.
A
relatividade de nosso conhecimento científico em relação à verdade do mundo foi
claramente demonstrada pela primeira vez por Albert Einstein. As duas teorias
da relatividade (restrita e geral) mostraram que a observação científica só
pode conduzir a conclusões relativas, porque as próprias conclusões dependem
sempre da situação e do movimento do observador. Simultaneamente, o princípio
de indeterminação de Werner Heisenberg excluiu a previsão definitiva (e em
seguida, toda possibilidade de determinismo) no domínio da microfísica. Ele
ligou, em outra, o resultado da observação científica não simplesmente ao fator
“observador”, mas ao próprio fato da observação, quer dizer à relação cada vez
estabelecida entre o observador e objetos considerados. Paralelamente, a
análise dos fenômenos de esplendor térmico feita por Max Planck e a teoria das
quantidades de Niels Bohr provaram que o comportamento da luz se identifica com
a constituição ou estrutura do átomo, quer dizer com a maneira que a menor
quantidade de energia se apresenta à observação. Manifestando-se sob a forma
ora corpuscular, ora ondulatória, a menor partícula de matéria ou de luz
representa uma transferência de energia. Isto significa que o próprio
fundamento (a “hypostase”) da matéria é a energia, que a matéria possui as
qualidades constitutivas da luz e que a luz é, de alguma maneira, a matéria
ideal.
2. A constituição “lógica”
da matéria
No
curso dos séculos, a filosofia se deparou com a questão: O quê é a matéria? Uma
solução simples era então contornar a questão e considerar a matéria como indo
de si e existindo desde a origem ou bem dizer que ele fora criada por Deus sem
explicar como, do imaterial, surgira o material nem como, da incorruptibilidade
e do intemporal, surgira o corruptível e o efêmero. Nestas duas interpretações
(autoexistência ou criação por Deus), a matéria permanecia igualmente
inexplicada. Era também realmente trágico assistir as querelas entre os
materialistas e idealistas (querelas por vezes sangrentas), posto que as duas
partes sustentavam posições metafísicas igualmente arbitrárias, dando-lhes somente
nomes diferentes.
Antes
de chegar às afirmações da física contemporânea, só encontramos na história da
filosofia uma única posição que explica a constituição da matéria. Fora ela
formulada pelos Padres gregos da Igreja. São Gregório de Nissa e São Máximo o
Confessor viram a matéria como um fato de ordem energética. Eles consideraram
sua constituição como sendo o concurso e a união de “qualidades lógicas”.
Tomadas em seu todo ou em cada uma de suas facetas, o mundo é um logos posto em
prática, uma energia criada pessoalmente por Deus. Conformemente ao relato da
Gênesis, Deus criou todas as coisas pelo Seu único Verbo (Logos): “Ele falou e
assim foi”. O Verbo de Deus não passa mas Se hypostasia enquanto que
acontecimento posto em prática, “tornado logo então, natureza”. Da mesma
maneira que o verbo humano de um poeta constitui uma nova realidade que lhe é
exterior, aquela do poema, mas ao mesmo tempo aquela do efeito e da
manifestação de seu próprio verbo, o Verbo (Logos) de Deus é posto em prática
dinamicamente “no fundamento e na formação da criação”.
Retomemos
a mesma imagem: o poema, obra do poeta, é uma coletânea, uma união de palavras
(logoï). Mas para que haja poema, uma simples reunião de logoï é insuficiente
pois que necessário se faz uma concordância, seu concurso, sua síntese e
construção. Este concurso dos logoï que constituem o poema é uma nova
realidade, duma outra “essência” - aquela do poeta. Todavia, esta realidade
revela sempre o logos da alteridade pessoal do poeta. Ela cria então, de maneira
contínua, novas realizações da vida: um poema é um logos que é posto em prática
e opera de maneira dinâmica, através do tempo; cada uma de suas leituras é uma
nova regeneração vivida, uma relação “lógica” distinta, o ponto de partida de
novos desafios criadores.
Nada
do que constitui um corpo material não é “corporal”, diz São Gregório de Nissa,
nem sua forma, nem sua cor, nem seu peso, nem sua densidade, nem sua composição
química, nem suas dimensões, nem seu grau de umidade, nem seu calor interno.
Tudo isto constitui um conjunto de logoi,
que ao se convergirem e reunirem numa unidade, tornam-se matéria. Na linguagem
da física moderna, tomamos a constatação de São Gregório de Nissa, utilizando
simplesmente uma terminologia diferente: fazíamos referência à lonjura das
ondas, dos campos eletromagnéticos na irradiação térmica, com relações de
carga, quer dizer sob medidas de energia, dos logoi que, ainda lá, determinam um acontecimento posto em prática:
a matéria. A matéria que exprimimos hoje é o quê a matéria é matemática: as
propriedades obedecem a relações lógicas, e as determinações qualitativas a
relações (ana-logias) de grandeza. Procurando a estrutura da matéria, a física
contemporânea não descreve uma entidade dada, ela detecta antes estados energéticos
que “emergem” no desafio da experimentação. As variedades da matéria se resumem
na diferenciação dos átomos. Quanto aos átomos, eles variam segundo a
combinação de suas cargas elétricas positivas e negativas; eles são, por assim
dizer, as manifestações duma única e mesma realidade: a energia.
Quer
utilizemos a linguagem dos Padres gregos ou aquela da física contemporânea, a
conclusão é que a realidade da matéria constitui um acontecimento posto em
prática que é acessível ao homem enquanto que possibilidade de logos. O logos
humano encontra no seio da natureza um outro logos. Assim, o conhecimento da
natureza é ela mesma somente aná-loga ou, por melhor dizer “dia-loga”. O logos caracteriza a pessoa; ele revela a capacidade
inicial do existente antes de toda outra possibilidade duma realização
“hypostática”. Ele é o original e o indescritível, a consciência de si da
pessoa, em sua alteridade e sua liberdade, em sua auto-revelação e sua
manifestação criadora.
É
no interior do mundo que o homem pessoal encontra o Deus pessoal. Ele O
encontra, não em um face-a-Face, mas oculto, tal como encontramos um poeta, de
maneira ocultada, através do logos de sua poesia ou um pintor através do logos
de suas cores. Pois que Ele é “o Deus que ordena à luz de surgir dentre as
trevas” (II Cor. 4, 6). Todavia, para fazer conhecê-Lo em verdade em Sua
alteridade pessoal, mesmo as conclusões chocantes da física contemporânea não
são suficientes. Somente “em nossos corações” que pode brilhar “a claridade do
conhecimento da glória de Deus”, e somente “na Pessoa de Jesus Cristo” (II Cor.
4, 6). O nome é a única revelação possível da pessoa, e o nome de Deus nos foi
dado na Pessoa histórica de Jesus – “o Nome acima de todo nome” – glória e
revelação de Deus Pai (Fp. 2, 9 – 11).
“O
Deus que disse: que das trevas resplandeça a luz, é Aquele que resplandeceu em
nossos corações, para fazer brilhar a claridade do conhecimento da glória de
Deus na Pessoa de Jesus Cristo” (II Cor. 4, 6). É Deus que nos revela Deus. Ele
Próprio Se desvenda pela claridade de um conhecimento que não é para ser tomado
como sentido ou conceito, mas como nome ou pessoa. Este conhecimento é o Cristo
Jesus, a glória-revelação de Deus. A claridade deste conhecimento é feita em
nossos “corações”, nas profundezas de nossa identidade pessoal, lá onde cada um
de nós é outro além de sua educação, seu caráter, sua hereditariedade, sua
psicologia, sua máscara social, e se identifica somente com seu nome. É em
nossos corações que o nome de Jesus manifesta a hypostase pessoal de Deus. Este
revelar-desvendar é, por excelência, o acontecimento da relação, da adoção e do
apelo “do não-ser ao ser”.
O
Deus revelado em nossos corações é Aquele-Mesmo que diz: que das trevas
resplandeça a luz, e que tirou do não-ser ao ser, a matéria original ideal. Seu
mandamento criador torna-se matéria, energia criada, suporte de Seu logos –
quer dizer do Logos que faz brilhar igualmente em nossos corações a claridade
do conhecimento de Sua Pessoa. Este primeiro mandamento criador: “Que a luz seja”,
contém todas as potencialidades em vista da realização da existência criada, em
particular a possibilidade da existência do mundo e de cada um de nós, da
existência de nossos vasos de argila. Mesmo se ele se situa há milhões de anos
atrás, este mandamento que inclui o sentido do mundo e de seu começo temporal
pode ser reencontrado no coração profundo de nossa identidade pessoal. Pois que
é lá que se desvenda o suporte pessoal deste mandamento, Jesus, o Deus Verbo.
A
verdade do mundo é, segundo a Igreja, inseparável do conhecimento de Deus, o
conhecimento de Deus é inseparável da Pessoa de Cristo. A Pessoa de Cristo,
pelo mandamento do Logos que se situa na origem dos tempos e nas profundezas de
nossos corações, é inseparável da claridade do conhecimento que nos ressuscita
à vida, em nossa adoção por Deus.
3. Energias naturais
Falando
precedentemente do Deus Trinitário e da maneira com a qual podemos exprimir Sua
existência, distinguimos a realidade formulada pelo vocábulo essência ou
natureza, da realidade formulada pelo vocábulo pessoa ou hypostase. Em nosso
proposto acerca do mundo, utilizamos o vocábulo energia para exprimir uma
terceira realidade que difere tão bem da essência que da hypostase, mas funda o
existente no mesmo título do que estas aqui, permanecendo mesmo assim
simultaneamente ligada a elas.
De
fato, a teologia da Igreja interpreta a realidade da existência, a aparição e a
manifestação do ser, a partir destas duas distinções fundamentais: ela
distingue a essência ou a natureza, da pessoa ou hypostase, da mesma forma com
que distingue igualmente as energias, tão bem da natureza que da hypostase. É
por estas três categorias fundamentais: natureza, hypostase, energias que a
teologia resume o modo de existência de Deus, do mundo e do homem.
Mas
o quê designamos precisamente pelo termo energias? Por este vocábulo designamos
a capacidade que possui a natureza ou a essência de fazer conhecer sua
hypostase ou existência, para torná-la conhecível e participável. Esta
definição pode ser esclarecida se utilizarmos de novo um exemplo tirado de
nossa experiência imediata e se falarmos de energias de nossa natureza ou
essência humana.
Todo
homem possui uma inteligência, uma razão, uma vontade, desejos, uma imaginação;
todo homem constrói, ama, cria. Todas estas faculdades, e outras ainda
análogas, são comuns a todos os homens; dizemos então que elas pertencem à
natureza ou essência humana. São capacidades ou energias naturais que
distinguem o homem de todo outro ser.
Todavia,
estas energias naturais, ainda que sejam comuns a todos os homens, são
manifestadas e realizadas por todo homem de uma maneira única, diferente e
insubstituível. Todos os homens possuem em efeito uma inteligência, uma
vontade, uma capacidade de desejo, uma imaginação, mas cada um deles pensa,
quer, deseja e imagina de uma maneira absolutamente distinta. Diríamos também,
decerto, que as energias naturais distinguem o homem de todo outro ser, mas,
por outro lado, se manifestam de uma maneira que distingue todo homem de todos
os seus congêneres. As energias naturais são a própria matéria em que se revela
e se manifesta a alteridade de cada hypostase humana, quer dizer de cada pessoa
humana.
Não
existe outra maneira de conhecer a alteridade pessoal do homem, fora da
manifestação das energias naturais. As energias nos permitem conhecer a
alteridade da pessoa, participando do modo (ou do “como”) de sua manifestação.
A maneira que se distingue o verbo de Cavafy daquele de Séferis, ou o amor de
nosso pai de ternura de nossa mãe, é uma coisa que não se pode determinar
objetivamente, senão por meio de expressões relativas e imagens fazendo o
ofício de analogias. Para conhecer esta diferença, devemos participar,
experimentar a participação ao verbo ou ao amor de outra pessoa. Nós dizemos, nas
páginas precedentes, que para conhecer alguém torna-se necessário ter uma
relação com ele. Completamos neste presente então esta reflexão dizendo que a
relação não significa um simples encontro, uma visão ou uma observação
imediata, mas antes uma participação às energias que revelam a alteridade da
pessoa: a expressão do rosto, a palavra, as manifestações de amor...
São
Máximo o Confessor faz uma observação muito importante a este respeito: ele
constata que existem duas sortes de energias: as energias homogêneas, tal como
ele as chama, e as energias heterogêneas para com a natureza do sujeito agente.
Desta forma, existem energias que são manifestadas de maneira homogênea (de
mesmo gênero, de mesmo tipo, de mesma qualidade) para com a natureza do sujeito
agente. E existem energias reveladas por essências de um gênero diferente da
natureza do sujeito agente. Por exemplo, a voz humana, a expressão articulada,
é uma energia verbal “homogênea” para com a natureza do homem. Mas a energia da
palavra pode igualmente ser revelada por essências “heterogêneas” em relação à
natureza do homem – estas outras essências, como a escritura, a cor, o mármore,
a música, etc, podem então dar forma à palavra.
Podemos
compreender assim como é possível conhecer uma pessoa, por vezes diretamente e
indiretamente: no-la conhecemos diretamente quando a encontramos, quando
escutamos suas palavras, vemos sua expressão, seu olhar, seu sorriso, quando a
amamos e quando ela nos ama. Mas conhecemos uma pessoa indiretamente quando
havemos somente lido seus escritos, escutado suas obras musicais ou visto
simplesmente as telas que ela pintou.
Em
ambos os pontos, o conhecimento é incomparavelmente mais completo do que toda
informação “objetiva” de nossa parte sobre a pessoa. Podemos fortemente reunir
todos os dados que existem sobre a vida de Van Gogh, por exemplo, e ler todas
as biografias que lhe são consagradas. Mas não conhecemos a pessoa de Van Gogh,
o elemento único, diferente e insubstituível de sua existência, antes somente
através de suas telas. É lá que encontramos um logos que é unicamente o seu e
que o distingue de todo outro pintor. Quando vemos suficientemente os quadros
de Van Gogh e reencontramos um, logo em seguida, dizemos imediatamente: é de
Van Gogh. Distinguimos imediatamente a alteridade de seu logos pessoal, a
unicidade de sua expressão criadora.
O
que quer que seja, este conhecimento da pessoa de Van Gogh através da
descoberta de suas obras, ainda que ela seja incomparavelmente mais completa
que os dados biográficos sobre sua pessoa, não deixam de ser, ele-mesmo, um
conhecimento indireto. Para que este conhecimento seja direto, necessário seria
encontrar Van Gogh, falar e viver com ele, amá-lo e ser por ele amado.
Queremos, portanto, insistir sobre a possibilidade que existe de conhecer uma
pessoa pela manifestação de seu logos (de sua alteridade existencial) através
das essências heterogêneas em relação à essência da própria pessoa. Van Gogh,
segundo sua essência, é um homem, enquanto que um de seus quadros, segundo sua
essência, é uma tela com cores. Estas cores dispostas sobre a tela tornam-se,
todavia um logos que desvenda o “mistério” da pessoa, a unicidade e a
alteridade da existência de Van Gogh. A energia criadora de Van Gogh, sua
criação de pintor, torna possível nossa própria participação ao conhecimento de
sua pessoa.
Faremos
ainda um remarque, neste mesmo exemplo: nós todos que conhecemos a unicidade do
verbo de Van Gogh, levando em consideração um de seus quadros, participamos a
este verbo, cada um de nós, de uma maneira pessoal, quer dizer única, diferente
e insubstituível sem que esta participação pessoal de cada um de nós
“despedace” o logos revelador da alteridade de Van Gogh em tantas partes quanto
haja participantes a este logos através do quadro. Exprimido de maneira
pessoal, o logos permanece uniforme e indivisível, enquanto que ele é
simultaneamente “participável por todos de uma maneira única”. O quadro (assim
como o poema, a estátua, a música, a voz humana) representa a energia do logos
de um ser humano – o pintor: dizendo de outra forma, a possibilidade para nós
todos de vermos o mesmo quadro, de participarmos à alteridade desta mesma
pessoa.
4.
Contemplação da natureza
Podemos,
neste agora, compreender mais profundamente o que a Igreja entende ao definir o
mundo como um efeito das Energias de Deus, uma revelação do logos criador de
Deus (da Pessoa de Deus Verbo) através das essências “heterogêneas” em relação
à Essência de Deus. A realidade material do mundo e a infinidade de espécies ou
essências que dão forma a esta realidade, são um efeito da energia livre,
pessoal e criadora de Deus. O mundo é essencialmente (segundo sua essência)
diferente de Deus, ainda que ele seja ao mesmo tempo um logos revelador da
alteridade pessoal de Deus.
Os
Padres da Igreja chamam contemplação da natureza o estudo do logos de Deus na
natureza, a descoberta de sua alteridade pessoal sobre cada faceta da beleza e
da sabedoria do mundo. A própria matéria do mundo é um acontecimento posto em
prática dinamicamente, uma energia “heterogênea” para com a Natureza de Deus,
uma energia criada do Deus incriado. Também distinguimos a energia criada de
Deus e constitutiva do mundo, de suas Energias incriadas que são “heterogêneas”
para com as criaturas e “homogêneas” para com Deus. Estas Energias incriadas
são chamadas comumente de Graça, quer dizer dom de vida da parte de Deus ao
homem.
Conhecemos
indiretamente a Face de Deus estudando a realidade do mundo, a alteridade do
logos das energias divinas criadas que constituem e formam o universo natural.
E nós conhecemos diretamente a Face de Deus por Suas Energias incriadas, pelas
quais Deus é “totalmente participável” e “participável para todos de uma
maneira única”, tornando-se simples e indivisível. É desta forma que Ele
oferece ao participante o que Ele possui “segundo
a natureza” fora a “identidade
segundo a essência” tornando o homem, segundo a palavra da Escritura, “participante da natureza divina” (II
Pd. 1, 4).
Fonte:
Contacts – revue française de l´orthodoxie XXXVIII année – nº136
Tradução para
a língua portuguesa: Manastir Sv. Apostola Petra i Pavla, BiH.
Traduzido do
grego por Michel STAVROU
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