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domingo, 18 de agosto de 2013

O Ícone da Transfiguração




Iniciemos a leitura do ícone pela esquerda. Até o centro, podemos observar uma espécie de gruta, dentro da qual se veem atrás os apóstolos, precedidos por Jesus, que é o único que tem auréola.

“Jesus tomou consigo a Pedro, Tiago e João”, escreve o evangelista, “e conduziu-os a sós a um alto monte.”[1] São os mesmos que, no Getsêmani,[2] tinha de levar consigo, ao separar-se do grupo de discípulos, para introduzi-los no mistério de sua pessoa.

Quer revelar-lhes a luz e começa por encaminhálos ao alto, até os cumes.[3] Começa assim “a aproximar-se (...) e a iluminar o escuro”, isto é, a sugerir conceitos de significado profundo e forte.[4]

Eis dois símbolos que convém destacar: a gruta e a altura. Os dois quadros do centro, da esquerda e da direita, nos quais se vê Cristo e os três discípulos, subindo e descendo; já dissemos que o iconógrafo representou como uma gruta.

A gruta encerra diversos significados, embora relacionados entre si. Já os antigos filósofos representavam nosso mundo sensível como uma caverna.[5] Gregório Nisseno recorre ao símbolo da caverna para expressar o mistério da Encarnação. Para encorajar os discípulos na ascensão pelo mundo material, Cristo desvenda o mistério de sua Encarnação.[6] Pelo contrário, a descida - sempre dentro da gruta - é a volta ao mundo sensível, após a experiência da visão divina.


Com respeito à altura, lemos em Romano o Melode:

“Aquele que descera à Terra, como só ele sabe,
e de novo subira, como só ele sabe,
convida os seus a subir a um alto monte,
a fim de que, elevando sua mente e seus sentidos,
esqueçam-se das coisas terrenas .”[7]


Não poderia deixar de evocar-se o clamor da esposa, no Cântico dos Cânticos:

“Oh, esta é a voz de meu amado!
Ei-lo que aí vem,
saltando sobre os montes
pulando sobre as colinas”.[8]


E Orígenes comenta que o esposo é Cristo, que vem até uma esposa amada, a Igreja. Vejamos:

“...como, vindo à Igreja, salte Cristo sobre os montes e brinque pelas colinas. Caminhando e avançando, Isaac era cada vez maior, até chegar a ser bem grande.[9] Paulo, pelo contrário, progredia não caminhando, mas correndo: terminei minha carreira”.[10] Porém, de nosso Salvador e esposo da Igreja não se diz nem que caminha nem que corre; diz-se que sobe.[11]


Sobe, porque sobre o escrito por Moisés e pelos Profetas tinha-se estendido um véu.


E Orígenes continua, dizendo:

Quando se tira o véu à esposa,[12] imediatamente ela pode ver o esposo que aparece pelos montes, isto é, nos livros da Lei (...). Eliminado, finalmente, o véu que cobria cada passagem do texto, o vê surgir, emergir e irromper com toda clareza. Creio que, somente por isso, para sua transfiguração, não escolheu Cristo um lugar plano ou um vale, mas subiu a um monte e ali se transfigurou, para que saibas como ele sempre se manifesta nos montes e colinas e compreendas que não deves buscá-lo em lugar algum, senão nos montes da Lei e dos Profetas.[13]

Elias (os profetas), Moisés (a Lei) e Cristo (a Plenitude da Lei e dos Profetas) aparecem precisamente nos três cumes de um mesmo monte, do qual estão pendentes os apóstolos (os homens). “Meu Senhor Jesus Cristo, nosso Rei, disse-me: vamos ao monte santo. E seus discípulos acompanharam-no na oração.”[14]

O monte santo escalado é conhecimento inefável de Deus (theognosia). É abrupto e difícil. Escalá-lo, guiados por Cristo, significa, pois, negar-se a si mesmo[15] e orientar o espírito para os mais elevados graus da virtude.[16]

“O Senhor é Espírito e onde está o Espírito do Senhor ali há liberdade,[17] de sorte que todo aquele que crê plenamente em Deus, pode ser chamado de monte ou de colina, pela sua excelência de vida e sua profundidade de inteligência. Mesmo tendo sido por algum tempo vale, se Cristo cresce nele em idade, sabedoria e graça,[18]” também o referido vale será aplainado.[19]

É também de Orígenes a bela citação:[20]

“E todos nós, que com o rosto descoberto refletimos como num espelho a glória do Senhor, vamo-nos transformando nessa mesma imagem cada vez mais gloriosos, conforme a oração do Senhor, que é Espírito.”[21]



[1] Mc 9,3.

[2]  Mc 14,33.

[3] Os montes e colinas, como lugares elevados, são símbolos de realidades positivas, em contraposição aos lugares baixos como sinais de materialidade e de pecado. Escreve Orígenes:“O fato de que todos os santos sejam denominados montes, seria confirmado por muitas passagens da Escritura, como se diz nos salmos: “Sua fundação sobre os santos montes” (Si 86 (87), 1); “Levanto meus olhos para os montes, de onde me virá o auxílio” (SI 120 (121), 1), etc.Poderíamos inclusive dizê-lo dos montes que o verbo divino sobe (Orígenes. Gomrnento ai canrico dei cantici, publicado por Simonetti, M., Roma, 1976 (III, 2,8). p. 226.

[4] Orígenes, ioc. cit., p. 222.

[5] Trata-se dos Pitagóricos, de Platão e, posteriormente, dos neoplatônicos. E famosa a alegoria platônica da caverna.

[6] Para um desenvolvimento e explicação dos conceitos sobre a gruta/caverna, veja-se Danielou. L’Essere e ii tempo ir? Gregorio di Nisso. Roma, 1991. pp. 230-241.

[7] Romano ei Melode. Himnos, 33 (SC 48).

[8] Ct 2,8.

[9] Gn 26,13.

[10] 2 Tm 4,7.

[11] Orígenes, op. cit., p. 225.

[12] 11 Cor 3,14.16.

[13] Orígenes, op. cit., p. 226 passini.

[14] “L’Apocalisse di Pietro.” lo: Gil Apocrifi, publicado por Weidinger, E. (edit. it. por Jucci, E.), n. 15, p. 682. Remonta esse apócrifo à primeira metade do século segundo.

[15] Lc 9,23; 14,27; Mc 8,34; Mt 16,24; 10,38.

[16] Cf. Gregório Nisseno. La vie de Moàre p. 207.

[17] 43.11 Cor 3,17.

[18] 44. Lc 2,52. A passagem refere-se a Jesus menino; porém, é sobretudo a base doutrinal do corpo místico, tão frequente nos comentários de Orígenes, o crescimento em Cristo é o crescimento de todo cristão enquanto a ele incorporado.

[19] 45. Lc 18,24.

[20] 46. Orígenes, op. ciL, p. 227.

[21] 47. lICor 3,18.

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