Iniciemos
a leitura do ícone pela esquerda. Até o centro, podemos observar uma espécie de
gruta, dentro da qual se veem atrás os apóstolos, precedidos por Jesus, que é o
único que tem auréola.
“Jesus
tomou consigo a Pedro, Tiago e João”, escreve o evangelista, “e conduziu-os a sós a um alto
monte.”[1] São os mesmos que, no Getsêmani,[2] tinha de levar consigo, ao
separar-se do grupo de discípulos, para introduzi-los no mistério de sua
pessoa.
Quer
revelar-lhes a luz e começa por encaminhálos ao alto, até os cumes.[3] Começa
assim “a aproximar-se (...) e a iluminar o escuro”, isto
é, a sugerir conceitos de significado profundo e forte.[4]
Eis dois
símbolos que convém destacar: a gruta e a altura. Os dois quadros do centro, da
esquerda e da direita, nos quais se vê Cristo e os três discípulos, subindo e
descendo; já dissemos que o iconógrafo representou como uma gruta.
A gruta
encerra diversos significados, embora relacionados entre si. Já os antigos
filósofos representavam nosso mundo sensível como uma caverna.[5] Gregório Nisseno recorre ao símbolo
da caverna para expressar o mistério da Encarnação. Para encorajar os
discípulos na ascensão pelo mundo material, Cristo desvenda o mistério de sua
Encarnação.[6] Pelo contrário, a
descida - sempre dentro da gruta - é a volta ao mundo sensível, após a
experiência da visão divina.
Com
respeito à altura, lemos em Romano o Melode:
“Aquele
que descera à Terra, como só ele sabe,
e de novo subira, como só ele sabe,
convida os seus a subir a um alto monte,
a fim de que, elevando sua mente e seus sentidos,
esqueçam-se das coisas terrenas .”[7]
e de novo subira, como só ele sabe,
convida os seus a subir a um alto monte,
a fim de que, elevando sua mente e seus sentidos,
esqueçam-se das coisas terrenas .”[7]
Não
poderia deixar de evocar-se o clamor da esposa, no Cântico dos
Cânticos:
“Oh, esta
é a voz de meu amado!
Ei-lo que aí vem,
saltando sobre os montes
pulando sobre as colinas”.[8]
Ei-lo que aí vem,
saltando sobre os montes
pulando sobre as colinas”.[8]
E Orígenes
comenta que o esposo é Cristo, que vem até uma esposa amada, a Igreja.
Vejamos:
“...como,
vindo à Igreja, salte Cristo sobre os montes e brinque pelas colinas.
Caminhando e avançando, Isaac era cada vez maior, até chegar a ser bem grande.[9] Paulo, pelo contrário,
progredia não caminhando, mas correndo: terminei minha carreira”.[10] Porém, de nosso
Salvador e esposo da Igreja não se diz nem que caminha nem que corre; diz-se
que sobe.[11]
Sobe,
porque sobre o escrito por Moisés e pelos Profetas tinha-se estendido um
véu.
E Orígenes
continua, dizendo:
Quando se
tira o véu à esposa,[12] imediatamente ela
pode ver o esposo que aparece pelos montes, isto é, nos livros da Lei (...).
Eliminado, finalmente, o véu que cobria cada passagem do texto, o vê surgir,
emergir e irromper com toda clareza. Creio que, somente por isso, para sua
transfiguração, não escolheu Cristo um lugar plano ou um vale, mas subiu a um monte
e ali se transfigurou, para que saibas como ele sempre se manifesta nos montes
e colinas e compreendas que não deves buscá-lo em lugar algum, senão nos montes
da Lei e dos Profetas.[13]
Elias (os
profetas), Moisés (a Lei) e Cristo (a Plenitude da Lei e dos Profetas) aparecem
precisamente nos três cumes de um mesmo monte, do qual estão pendentes os
apóstolos (os homens). “Meu Senhor Jesus Cristo, nosso Rei, disse-me:
vamos ao monte santo. E seus discípulos acompanharam-no na oração.”[14]
O monte
santo escalado é conhecimento inefável de Deus (theognosia). É
abrupto e difícil. Escalá-lo, guiados por Cristo, significa, pois, negar-se a
si mesmo[15] e orientar o
espírito para os mais elevados graus da virtude.[16]
“O Senhor
é Espírito e onde está o Espírito do Senhor ali há liberdade,[17] de sorte que todo
aquele que crê plenamente em Deus, pode ser chamado de monte ou de colina, pela
sua excelência de vida e sua profundidade de inteligência. Mesmo tendo sido por
algum tempo vale, se Cristo cresce nele em idade, sabedoria e graça,[18]” também o referido
vale será aplainado.[19]”
É também
de Orígenes a bela citação:[20]
“E todos
nós, que com o rosto descoberto refletimos como num espelho a glória do Senhor,
vamo-nos transformando nessa mesma imagem cada vez mais gloriosos, conforme a
oração do Senhor, que é Espírito.”[21]
[1] Mc 9,3.
[2]
Mc 14,33.
[3] Os montes e colinas, como lugares elevados, são
símbolos de realidades positivas, em contraposição aos lugares baixos como
sinais de materialidade e de pecado. Escreve Orígenes:“O fato de que todos
os santos sejam denominados montes, seria confirmado por muitas passagens da
Escritura, como se diz nos salmos: “Sua fundação sobre os santos montes” (Si
86 (87), 1); “Levanto meus olhos para os montes, de onde me virá o
auxílio” (SI 120 (121), 1), etc.Poderíamos inclusive dizê-lo dos
montes que o verbo divino sobe (Orígenes. Gomrnento ai canrico dei
cantici, publicado por Simonetti, M., Roma, 1976 (III, 2,8). p.
226.
[4] Orígenes, ioc. cit., p. 222.
[5] Trata-se dos Pitagóricos, de Platão e,
posteriormente, dos neoplatônicos. E famosa a alegoria platônica da caverna.
[6] Para um desenvolvimento e explicação dos
conceitos sobre a gruta/caverna, veja-se Danielou. L’Essere e ii tempo
ir? Gregorio di Nisso. Roma, 1991. pp. 230-241.
[7] Romano ei Melode. Himnos, 33
(SC 48).
[8] Ct 2,8.
[9] Gn 26,13.
[10] 2 Tm 4,7.
[11] Orígenes, op. cit., p. 225.
[12] 11 Cor 3,14.16.
[13] Orígenes, op. cit., p.
226 passini.
[14] “L’Apocalisse di Pietro.” lo: Gil
Apocrifi, publicado por Weidinger, E. (edit. it. por Jucci, E.), n.
15, p. 682. Remonta esse apócrifo à primeira metade do século segundo.
[15] Lc 9,23; 14,27; Mc 8,34; Mt 16,24; 10,38.
[16] Cf. Gregório Nisseno. La vie de Moàre p. 207.
[17] 43.11 Cor 3,17.
[18] 44. Lc 2,52. A passagem refere-se a Jesus menino; porém, é
sobretudo a base doutrinal do corpo místico, tão frequente nos comentários de
Orígenes, o crescimento em Cristo é o crescimento de todo cristão enquanto a
ele incorporado.
[19] 45. Lc 18,24.
[20] 46. Orígenes, op. ciL, p.
227.
[21] 47. lICor 3,18.
Nenhum comentário:
Postar um comentário