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domingo, 18 de agosto de 2013

A Transfiguração, Um Esplendor do Reino



Olivier Clèment

Os evangelistas sinóticos – Mateus, Marcos, Lucas – narram o evento da Transfiguração de modo quase idêntico: Jesus toma consigo Pedro, Tiago e João – os dois últimos são irmãos -, mais vezes companheiros seus privilegiados “porque eram mais perfeitos do que os outros”, afirma S. João Crisóstomo; Pedro, porque amava a Jesus mais do que os outros, João porque era amado por Jesus mais do que os outros, e Tiago porque se unira na resposta do irmão: “Sim, podemos beber do teu cálice”(cf. Mt 20,22).

Jesus os conduz à parte a uma “alta montanha”, lugar por excelência das manifestações divinas; dirá a Tradição: o monte Tabor. Ali ele aparece radiante de uma luz esplêndida que emana “tanto de seu rosto brilhante como o sol” como de suas vestes – obra do homem, da cultura humana – e se irradia pela natureza circunstante, como o mostram os ícones.

Moisés – a lei – e Elias – os profetas – aparecem e conversam com Jesus. A primeira aliança aponta para a última. Lucas precisa que a conversa tem como tema o êxodo, a partida do Senhor. Pedro, em êxtase, sugere construir três tendas, na esperança de poder permanecer longamente naquele estado. Mas tudo está envolvido pela “nuvem luminosa” do Espírito, da qual ressoa no coração dos três discípulos agitados, prostrados com a face por terra, a voz do Pai: “Este é o meu Filho, o amado, escutai-o!”. Depois, tudo desaparece, e permanece Jesus, sozinho, que ordena aos três guardarem segredo a respeito do que tinham visto, “até que o Filho do homem ressuscitasse dos mortos”.

A partir do fim das perseguições romanas contra os cristãos, no século IV, foram edificadas diversas igrejas no Tabor. Sua dedicação parece estar na origem da festa que, a partir do VI século, difundiu-se por todo o Oriente Médio. No calendário ocidental foi estavelmente introduzida em 1457, pelo papa Calixto III, como reconhecimento pela recente vitória contra os turcos. Os evangelhos não permitem fixar, no ritmo anual, uma data para a Transfiguração. Com a intuição cósmica que o caracteriza, o Oriente fixou a data de 6 de agosto, grande meio-dia do ano, apogeu da luz do verão. Nesse dia se abençoam os frutos da estação; muitas vezes, nos países da bacia do Mediterrâneo, é a uva o fruto por excelência abençoado. O Ocidente, menos sensível ao alcance espiritual do acontecimento, mesmo conservando a festa da Transfiguração em 6 de agosto, preferiu acrescentar uma segunda celebração antes da Páscoa, no segundo Domingo da Quaresma, de tal modo seguindo mais de perto a cronologia da vida de Jesus.

No Oriente, a festa põe o acento na divindade de Cristo e no caráter trinitário de seu esplendor. “Conversando com Cristo, Moisés e Elias revelam que Ele É o Senhor dos vivos e dos mortos, o Deus que tinha falado na lei e nos profetas; e a voz do Pai, que sai da nuvem luminosa, “dá-lhe testemunho”, recita a liturgia bizantina.

Contudo, a Transfiguração não é um triunfo terreno, que Jesus sempre rejeitou em sua vida – e aqui está o erro de leitura de Calixto III; nem mesmo é uma emoção espiritual para degustar – eis o erro de Pedro. É um lampejo, um esplendor daquele Reino que é o próprio Cristo, uma luz que é também a da Páscoa, do Pentecostes, da parusia quando, com o retorno glorioso de Cristo, o mundo inteiro será transfigurado.

Moisés e Elias, já o dissemos, falam com Jesus a respeito de sua partida, de sua paixão: apenas esta última fará resplandecer a luz, não no cume do Tabor, a montanha que simbolicamente representa as teofanias e os êxtases, mas no próprio coração dos sofrimentos dos homens, de seu inferno e, enfim, de sua morte. A liturgia ainda nos ajuda a entender:

“Ouvi – diz o Pai – aquele que através da cruz esvaziou o inferno e dá aos mortos a vida sem fim”.

Para a teologia Ortodoxa, a luz da Transfiguração é a energia divina (de acordo com o vocabulário precisado no séc. XIV por Gregório Palamas), isto é, o resplandecer de Deus: o mesmo Deus que, enquanto permanece inacessível na sua “supra-essência”, se torna participável aos homens por uma loucura de amor. Daqui a compreensão da importância desta festa para a tradição mística e iconográfica.

O resplandecer, o esplendor divino é tal que joga por terra, na montanha, os apóstolos. Mesmo assim, no Tabor ele permanece uma luz externa ao homem. Ora, ela nos é doada – como centelha imperceptível ou rio de fogo – no pão e no vinho eucarísticos. Então nossos olhos se abrem e nós compreendemos que o mundo inteiro está impregnado dessa luz: todas as religiões, todas as intuições da arte e do amor o sabem, mas foi necessário que viesse o Cristo e que nele acontecesse aquela imensa metamorfose – assim os gregos denominam a Transfiguração – para que enfim se revelasse que, à nascente dos veios de fogo, de paz e de beleza presentes na história, existe, vencedor da noite e da morte, um Rosto.


Tradução Pe. José Artulino Besen

Nota Sobre o Autor:
Olivier Clément nasceu em 1921 no sul da França. Em sua juventude, ele foi um agnóstico. Mas, em sua maturidade, tornou-se influenciado por uma série de renomados teólogos ortodoxos que viviam na França: Vladimir Lossky , Nicholas Berdiaev e Paul Evdokimov. Foi batizado pelas mãos do Padre Evgraph Kovalesvky, mais tarde Bispo Jean-Nectaire de Saint-Denis . Olivier Clèment se tornou membro do corpo docente do Instituto São Sérgio, em Paris. Além de uma extensa coleção de escritos, editou a revista teológica'' Contatos''. Gostava de fazer amigos e, assim, dialogou os principais temas espirituais com uma série de personalidades eminentes, incluindo o Patriarca Atenágoras, o Papa João Paulo II, o sacerdote e teólogo Dumitru Staniloae e o irmão Roger de Taizé. Clément adormeceu em 15 de janeiro de 2009 com a idade de 87 e foi sepultado em Paris, na França.

A Transfiguração do Senhor



São João de Damasco
«Uma nuvem luminosa cobriu-os com a sua sombra» e os discípulos foram tomados de grande temor vendo Jesus, o Salvador, com Moisés e Elias na nuvem. Outrora, é certo, quando Moisés viu Deus, entrou na nuvem divina (Ex 24,18), dando assim a compreender que a Lei era uma sombra. Escuta o que diz S. Paulo:
  «Na verdade, a Lei não era mais do que sombra dos bens futuros, não a própria realidade» (He 10,1).
  Nesse tempo, Israel «não tinha podido fixar os olhos na glória passageira do rosto de Moisés» (Col 3,7). «Mas nós, com o rosto descoberto, refletimos a glória do Senhor e somos transformados de uma glória para uma glória ainda maior, pela ação do Senhor que é Espírito» (v. 18). É por isso que a nuvem que cobriu os discípulos com a sua sombra não estava cheia de trevas mas de luz. Com efeito, «o mistério escondido há séculos e através das gerações foi revelado» (Col 1,26) e a glória perpétua e eterna foi manifestada. Eis porque é que Moisés e Elias, um de cada lado do Salvador, personificavam a Lei e os profetas. Aquele que a Lei e os profetas anunciavam é, na verdade, Jesus, o dispensador da vida.
Moisés representa também a assembleia dos santos que outrora adormeceram (Dt 24,5) e Elias, a dos vivos (2R 2,11), porque Jesus transfigurado é o Senhor dos vivos e dos mortos. E Moisés entrou finalmente na Terra Prometida porque é Jesus que aí o conduz. Outrora, Moisés tinha visto apenas de longe a herança prometida (Dt 34,4); hoje vê-a nitidamente.  
Homilia da Transfiguração do Senhor, por São João Damasceno (c. 676-749)
Fonte: Evangelho Cotidiano



A Participação dos Fiéis na Natureza Divina




São Nikolai Velimirovic
Irmãos, como pode o homem mortal ter parte na natureza de Deus? Como pode a eternidade ser companheira de tempo e de glória com o que é sem glória, o incorruptível com o corruptível, o puro com o impuro? Simplesmente não podem, a não ser em condições particulares, e essas condições o Apóstolo Pedro menciona - uma condição da parte de Deus e a outra por parte dos homens.  
Como condição da parte de Deus, o apóstolo diz:  
"Conforme o seu divino poder nos deu todas as coisas que dizem respeito à vida e à piedade" (2 Pedro 1:3).  
Como condição por parte do homem:  
"...havendo escapado da corrupção que há no mundo das paixões" (2 Pedro 1:4). 
Deus cumpriu a sua condição e nos deu o Seu poder. "Através do conhecimento daquele que nos chamou para a glória e virtude" (2 Pedro 1:3). Agora é a vez do homem cumprir a sua condição, ou seja, conhecer a Cristo como Senhor para escapar dos desejos corporais deste mundo.  
O Senhor Jesus Cristo abriu o céu e todos os tesouros do céu e, em seguida, chamou a humanidade a se aproximar dele para receber esses tesouros. Como Ele os convida? Apenas por palavras? Em palavras, mas não só palavras, mas também "nos chamou para a glória e virtude"; glória, isto é, pela Sua ressurreição gloriosa; virtude, isto é, pela Sua obra miraculosa e sofrimento. Por isso Ele nos convidou para receber as promessas grandíssimas que, por eles, podemos participam na natureza de Deus. Mas, para que possamos conhecer a Cristo e ouvir o Seu convite, devemos primeiro escapar de todos os desejos físicos do mundo. Se não escapar, então vamos permanecer cegos diante d'Ele, antes de Sua glória e virtude e surdo ao seu convite!  
Ó irmãos, quão enorme é a misericórdia de Deus para conosco! De acordo com esta grande misericórdia, Deus oferece a nós mortais a adoção pelo Único Imortal, e para nós pecadores, ergueu um edifício no Corpo Glorioso de Jesus. Mas, sob uma única condição, que não é nem um jugo grande nem pesada cruz.  
Ó Senhor Jesus, em Quem se cumprem todas as promessas e Onde reside a fonte de todo bem, curai-nos de nossa cegueira e surdez e concedei-nos poder para escapar das paixões do mundo. 
Por São Nikolai Velimirovic




O Ícone da Transfiguração




Iniciemos a leitura do ícone pela esquerda. Até o centro, podemos observar uma espécie de gruta, dentro da qual se veem atrás os apóstolos, precedidos por Jesus, que é o único que tem auréola.

“Jesus tomou consigo a Pedro, Tiago e João”, escreve o evangelista, “e conduziu-os a sós a um alto monte.”[1] São os mesmos que, no Getsêmani,[2] tinha de levar consigo, ao separar-se do grupo de discípulos, para introduzi-los no mistério de sua pessoa.

Quer revelar-lhes a luz e começa por encaminhálos ao alto, até os cumes.[3] Começa assim “a aproximar-se (...) e a iluminar o escuro”, isto é, a sugerir conceitos de significado profundo e forte.[4]

Eis dois símbolos que convém destacar: a gruta e a altura. Os dois quadros do centro, da esquerda e da direita, nos quais se vê Cristo e os três discípulos, subindo e descendo; já dissemos que o iconógrafo representou como uma gruta.

A gruta encerra diversos significados, embora relacionados entre si. Já os antigos filósofos representavam nosso mundo sensível como uma caverna.[5] Gregório Nisseno recorre ao símbolo da caverna para expressar o mistério da Encarnação. Para encorajar os discípulos na ascensão pelo mundo material, Cristo desvenda o mistério de sua Encarnação.[6] Pelo contrário, a descida - sempre dentro da gruta - é a volta ao mundo sensível, após a experiência da visão divina.


Com respeito à altura, lemos em Romano o Melode:

“Aquele que descera à Terra, como só ele sabe,
e de novo subira, como só ele sabe,
convida os seus a subir a um alto monte,
a fim de que, elevando sua mente e seus sentidos,
esqueçam-se das coisas terrenas .”[7]


Não poderia deixar de evocar-se o clamor da esposa, no Cântico dos Cânticos:

“Oh, esta é a voz de meu amado!
Ei-lo que aí vem,
saltando sobre os montes
pulando sobre as colinas”.[8]


E Orígenes comenta que o esposo é Cristo, que vem até uma esposa amada, a Igreja. Vejamos:

“...como, vindo à Igreja, salte Cristo sobre os montes e brinque pelas colinas. Caminhando e avançando, Isaac era cada vez maior, até chegar a ser bem grande.[9] Paulo, pelo contrário, progredia não caminhando, mas correndo: terminei minha carreira”.[10] Porém, de nosso Salvador e esposo da Igreja não se diz nem que caminha nem que corre; diz-se que sobe.[11]


Sobe, porque sobre o escrito por Moisés e pelos Profetas tinha-se estendido um véu.


E Orígenes continua, dizendo:

Quando se tira o véu à esposa,[12] imediatamente ela pode ver o esposo que aparece pelos montes, isto é, nos livros da Lei (...). Eliminado, finalmente, o véu que cobria cada passagem do texto, o vê surgir, emergir e irromper com toda clareza. Creio que, somente por isso, para sua transfiguração, não escolheu Cristo um lugar plano ou um vale, mas subiu a um monte e ali se transfigurou, para que saibas como ele sempre se manifesta nos montes e colinas e compreendas que não deves buscá-lo em lugar algum, senão nos montes da Lei e dos Profetas.[13]

Elias (os profetas), Moisés (a Lei) e Cristo (a Plenitude da Lei e dos Profetas) aparecem precisamente nos três cumes de um mesmo monte, do qual estão pendentes os apóstolos (os homens). “Meu Senhor Jesus Cristo, nosso Rei, disse-me: vamos ao monte santo. E seus discípulos acompanharam-no na oração.”[14]

O monte santo escalado é conhecimento inefável de Deus (theognosia). É abrupto e difícil. Escalá-lo, guiados por Cristo, significa, pois, negar-se a si mesmo[15] e orientar o espírito para os mais elevados graus da virtude.[16]

“O Senhor é Espírito e onde está o Espírito do Senhor ali há liberdade,[17] de sorte que todo aquele que crê plenamente em Deus, pode ser chamado de monte ou de colina, pela sua excelência de vida e sua profundidade de inteligência. Mesmo tendo sido por algum tempo vale, se Cristo cresce nele em idade, sabedoria e graça,[18]” também o referido vale será aplainado.[19]

É também de Orígenes a bela citação:[20]

“E todos nós, que com o rosto descoberto refletimos como num espelho a glória do Senhor, vamo-nos transformando nessa mesma imagem cada vez mais gloriosos, conforme a oração do Senhor, que é Espírito.”[21]



[1] Mc 9,3.

[2]  Mc 14,33.

[3] Os montes e colinas, como lugares elevados, são símbolos de realidades positivas, em contraposição aos lugares baixos como sinais de materialidade e de pecado. Escreve Orígenes:“O fato de que todos os santos sejam denominados montes, seria confirmado por muitas passagens da Escritura, como se diz nos salmos: “Sua fundação sobre os santos montes” (Si 86 (87), 1); “Levanto meus olhos para os montes, de onde me virá o auxílio” (SI 120 (121), 1), etc.Poderíamos inclusive dizê-lo dos montes que o verbo divino sobe (Orígenes. Gomrnento ai canrico dei cantici, publicado por Simonetti, M., Roma, 1976 (III, 2,8). p. 226.

[4] Orígenes, ioc. cit., p. 222.

[5] Trata-se dos Pitagóricos, de Platão e, posteriormente, dos neoplatônicos. E famosa a alegoria platônica da caverna.

[6] Para um desenvolvimento e explicação dos conceitos sobre a gruta/caverna, veja-se Danielou. L’Essere e ii tempo ir? Gregorio di Nisso. Roma, 1991. pp. 230-241.

[7] Romano ei Melode. Himnos, 33 (SC 48).

[8] Ct 2,8.

[9] Gn 26,13.

[10] 2 Tm 4,7.

[11] Orígenes, op. cit., p. 225.

[12] 11 Cor 3,14.16.

[13] Orígenes, op. cit., p. 226 passini.

[14] “L’Apocalisse di Pietro.” lo: Gil Apocrifi, publicado por Weidinger, E. (edit. it. por Jucci, E.), n. 15, p. 682. Remonta esse apócrifo à primeira metade do século segundo.

[15] Lc 9,23; 14,27; Mc 8,34; Mt 16,24; 10,38.

[16] Cf. Gregório Nisseno. La vie de Moàre p. 207.

[17] 43.11 Cor 3,17.

[18] 44. Lc 2,52. A passagem refere-se a Jesus menino; porém, é sobretudo a base doutrinal do corpo místico, tão frequente nos comentários de Orígenes, o crescimento em Cristo é o crescimento de todo cristão enquanto a ele incorporado.

[19] 45. Lc 18,24.

[20] 46. Orígenes, op. ciL, p. 227.

[21] 47. lICor 3,18.