Páginas

segunda-feira, 25 de junho de 2012

O Ideal Ascético e o Novo Testamento


Reflexões sobre a Crítica

da Teologia da Reforma


Arcipreste George Florovsky

Tradução: Rev. Pedro Oliveira Junior



Conteúdo:

 

Se o ideal monástico é a união com Deus através da oração, através da humildade, através da obediência, através de constante reconhecimento dos próprios pecados, voluntários ou involuntários, através da renuncia aos valores desse mundo, através de pobreza, através de castidade, através do amor pela humanidade e amor por Deus, então é esse um ideal Cristão? Para alguns o simples levantar dessa questão para parecer estranha e estrangeira. Mas a história do Cristianismo, especialmente a nova atitude teológica obtida como resultado da Reforma, força tal questão e exige uma resposta séria. Se o ideal monástico é obter uma criativa liberdade espiritual, e se o ideal monástico constata que essa liberdade só é obtenível em Deus o Pai, Deus o Filho e Deus o Espírito Santo, e se o ideal monástico afirma que se tornar um escravo de Deus é ontológica e existencialmente o caminho para tornar-se livre, o caminho no qual a humanidade se torna completamente humana precisamente porque a existência criada é contingente a Deus, é em si ladeado pelos dois lados por não-existência, então tal ideal é Cristão? É um ideal Bíblico — do Novo Testamento? Ou é esse ideal monástico, como seus oponentes afirmam, uma distorção do autêntico Cristianismo; uma escravidão a um mecânico “monasticismo” que “opera justiça”?

O Significado do Deserto.

Quando nosso Senhor estava para começar o Seu ministério, ele foi para o deserto. Nosso Senhor tinha opções, mas selecionou — ou melhor, foi “impelido pelo Espírito” para o deserto. Obviamente não é uma ação sem significado, não uma seleção do tipo de lugar sem significado. E lá — no deserto — nosso Senhor se engaja em combate espiritual, pois “Ele jejuou quarenta dias e quarenta noites.” O Evangelho de São Marcos acrescenta que nosso Senhor “viveu entre feras.” Nosso Senhor, o Deus-Homem, foi verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem. Exclusivo do trabalho redentor de nosso Senhor, único só para nosso Senhor, Ele nos chama para O seguir. “Seguir” nosso Senhor não é excludente; não é selecionar certos aspectos psicologicamente agradáveis da vida e ensinamentos de nosso Senhor para seguir. Ao contrário é todo abarcante. Temos que seguir nosso Senhor de todas as maneiras possíveis. “Ir para o deserto” é “seguir” nosso Senhor. É interessante que nosso Senhor retorna ao deserto após a morte de São João Batista. Há uma razão óbvia para isso. “e ouvindo (sobre a morte de São João Batista) Jesus saiu dali num barco para um lugar deserto privadamente.” Quando Santo Antonio vai para o deserto, ele está “seguindo” o exemplo de nosso Senhor — na verdade, ele está “seguindo” nosso Senhor. Isso de modo algum diminui o trabalho salvífico, único, de nosso Senhor, isso não faz de modo algum de nosso Senhor Deus, o Deus-Homem, um mero exemplo. Mas em acréscimo ao Seu trabalho redentor, que só poderia ser realizado por nosso Senhor, nosso Senhor ensinou e mostrou exemplos. E ao “seguir” nosso Senhor no deserto, Santo Antonio estava entrando num terreno já marcado e estampado por nosso Senhor como um lugar específico para guerra espiritual. Há tanto especificidade quanto “tipo” no “deserto.” Nas regiões geográficas onde não há desertos, há lugares que são similares ou que se aproximam do tipo de lugar simbolizado pelo “deserto.”
            É o tipo de lugar que deixa o coração humano aliviado, isolado. É o tipo de lugar que põe o coração humano num estado de estar só, um estado no qual meditar, orar, jejuar, refletir sobre a própria existência e no relacionamento com a realidade definitiva—Deus. E mais, é um local onde a realidade espiritual é intensificada, um lugar onde a vida espiritual pode ser intensificada, e simultaneamente onde as forças opositoras da vida espiritual podem se tornar mais dominantes. É um terreno de batalha, mas espiritual. E foi nosso Senhor, e não Santo Antonio que a colocou antes. Nosso Senhor diz que “o que foi semeado entre espinhos é o que ouve a palavra, mas os cuidados deste mundo, e a sedução das riquezas, sufocam a palavra, e fica infrutífera.” O deserto, ou um lugar similar, precisamente corta os cuidados e ansiedades com este mundo, e a sedução das riquezas terrenas. Ele corta precisamente com essa “mundanidade” e precisamente por isso ele contém dentro de si uma poderosa razão espiritual para existir dentro dos caminhos da Igreja. Não como o único caminho, não como o caminho para todos, mas como um caminho completamente autêntico da vida Cristã.

No Evangelho de São Mateus (5:16) é nosso Senhor que utiliza a terminologia de “boas obras.” “Assim resplandeça a vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras e glorifiquem a vosso Pai, que está nos céus.” Contextualmente essas “boas obras” são definidas no texto precedente das “Beatitudes.” “Bem-aventurados os mansos, porque eles herdarão a terra.” “Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque eles serão fartos.” “Bem-aventurados os limpos de coração, porque eles verão a Deus.” Não é parte integral do objetivo monástico se tornar manso, ter fome e sede de justiça, e se tornar limpo no coração? Esse, por certo, deve ser o objetivo de todos os Cristãos, mas o monasticismo, que faz disso uma parte integral da sua vida ascética, não pode de jeito nenhum ser excluído. As Beatitudes não são mais do que simples expressão retórica? Não são as Beatitudes uma parte dos mandamentos de nosso Senhor? No Evangelho de São Mateus (5:19) nosso Senhor expressa um profundo e significativo pensamento — ou melhor, um aviso. “Qualquer pois que violar um destes mais pequenos mandamentos, e assim ensinar aos homens, será chamado o menor no reino dos céus;” E é nesse contexto que nosso Senhor continua a aprofundar o significado da velha lei com a nova, um significado espiritual, uma penetrante interiorização da “lei.” Ele não anula ou abroga a lei, mas sim a estende para o seu limite mais lógico e ontológico, pois Ele leva o significado espiritual da lei para o mais profundo da existência interna do homem.
            “Vos ouvistes o que foi dito para aqueles no passado ... mas eu vos digo.” Agora, com o aprofundamento da dimensão espiritual da lei, o antigo permanece, é a base, mas sua realidade espiritual é apontada para sua fonte. “Não matarás” se torna inextricavelmente ligado a “ira.” “Mas Eu digo que todo aquele que ficar irado com seu irmão será sujeito a julgamento.” Não mais é o ato externo o único ponto focal. Mas a fonte, o intento, o motivo são agora considerados como o solo do qual brota o ato externo. A humanidade deve agora guardar, proteger, e purificar a emoção ou atitude interna de “ira” e, fazendo assim, a considerar na mesma luz que o ato externo de matar ou assassinar. Nosso Senhor atingiu o mais profundo do coração humano e apontou para a fonte do ato externo. “Não cometerás adultério. Mas eu digo que qualquer um que olhar para uma mulher libidinosamente, já cometeu adultério com ela em seu coração. De uma perspectiva espiritual, uma pessoa que não age externamente, mas cobiça internamente é igualmente responsável pela realidade do ‘adultério’” . “Vós ouvistes o que foi dito, ‘amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo.’ Mas Eu vos digo: amai vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem para que possais vos tornardes filhos de vosso Pai no céu.”

A Inadequação da Crítica de Anders Nygren.

A ideia Cristã de amor é, de fato, alguma coisa nova. Mas não é alguma coisa tão radicalmente impar que a alma humana não possa compreendê-la. Não é uma “transavaliação de todos os valores antigos,” como Anders Nygren afirmou no seu longo estudo Ágape e Eros. Apesar de haver certos aspectos da verdade em algumas das afirmações de Nygren, sua premissa em si está incorreta. Nygren lê no Novo Testamento e na Igreja Primitiva a posição básica de Lutero ao invés de tratar do pensamento inicial Cristão de dentro do seu próprio meio. Tal aproximação produz bem poucos frutos definitivos e, com frequência, como é o caso de sua posição em Ágape e Eros, distorce as fontes originais com pressuposições que entram na história do pensamento Cristão 1500 anos depois de nosso Senhor ter alterado a própria natureza da humanidade ao entrar na existência humana como Deus e Homem. Há muito em Lutero que é interessante, perceptivo, e verdadeiro. Porém, há também muito que não fala a mesma linguagem do Cristianismo do inicio. E aí se encontra a grande divisão no diálogo ecumênico. Pois para o diálogo ecumênico dar fruto, as profundas controvérsias que separam as igrejas não podem ser silenciadas. Há muito em Lutero com que os teólogos Ortodoxos Orientais podem se relacionar. No entanto, monasticismo é uma área na qual existe profundo desentendimento. O próprio Lutero, no inicio, não rejeitou o monasticismo. A Reforma de Lutero foi resultado da sua incompreensão do Novo Testamento, uma incompreensão resultante de um entendimento que o próprio Lutero chamou de “novo.” Sua posição teológica já estava formada antes do assunto das indulgências e sua divulgação das Noventa e Cinco Teses. Nygren, fiel à visão teológica de Lutero, tem uma razão teológica para sua posição em Ágape e Eros.
            Nygren identifica sua interpretação de Ágape com o monoenergético conceito de Deus, um conceito de Deus que seria correto em si, pois Deus é a fonte de tudo. Mas uma vez que sejamos confrontados com o mistério da criação, o mistério dessa “outra” existência, essa existência criada que inclui a humanidade, nós enfrentamos uma situação totalmente diferente. O significado existencial e ontológico da existência criada do homem é precisamente que Deus não tinha que criá-la, e foi um ato livre da Divina liberdade. Mas — e aqui está a grande dificuldade criada por um Cristianismo não balanceado na doutrina da graça e liberdade — ao criar livremente o homem Deus quis dar a ele uma liberdade espiritual interna. De modo algum esta é uma posição Pelagiana ou Semi-Pelagiana. A equilibrada doutrina sinergética da Igreja Cristã do inicio, uma doutrina mal compreendida e minada pelo Cristianismo Latino em geral a partir do Bem-aventurado Agostinho — apesar de sempre ter havido oposição interna a isso na Igreja Latina — sempre entendeu que Deus inicia, acompanha e completa tudo no processo de salvação. O que ela sempre rejeitou — tanto espontânea quanto intelectualmente — é a ideia da graça irresistível, a ideia de que o homem não tem papel participativo em sua salvação. Nygren identifica qualquer participação do homem em sua salvação, qualquer movimento da vontade e alma do homem para Deus, como uma distorção pagã do Ágape, como Eros. E essa atitude, essa perspectiva teológica será em essência o ponto determinante para a rejeição do monasticismo e outras formas de ascetismo e espiritualidade tão familiares para a Igreja Cristã desde seu inicio.
            Se a posição de Nygren no Ágape está correta, então as palavras de nosso Senhor cotadas acima, não encontrariam base nos corações dos ouvintes para entendimento. Ales disso, nosso Senhor ao usar a forma verbal de Ágape — agapate — usa o “velho” comando como base para dar o novo, a extensão espiritual daquele comando de ágape, de amor. Se Nygren está correto, o “velho” contexto de ágape teria sido sem significado, especialmente como a base sobre a qual nosso Senhor constrói um novo espiritual e ontológico caráter do ágape. O ponto de Nygren é que o “Comando de Amor” ocorre no Velho Testamento e que é “introduzido nos Evangelhos, não como algo novo, mas como uma citação do Velho Testamento.” Ele está tanto correto quanto errado. Correto em que é uma referência tirada do Velho Testamento, De onde mais nosso Senhor tiraria referências ao se dirigir ao “seu povo”? Ele está errado quando alega que não é nada mais do que uma citação do Velho Testamento, precisamente porque nosso Senhor usa as referências do Velho Testamento como uma base sobre a qual construir. Por isso, a base tem que ser segura do contrário a construção racharia e o ensinamento seria errôneo. O próprio Nygren afirma que “o Ágape nunca pode ser ‘auto-evidente.’” Fazendo tal afirmação, Nygren corta qualquer possibilidade dos ouvintes de nosso Senhor entender qualquer discurso onde nosso Senhor use o termo “Ágape.” E ainda Nygren escreve que “o motivo Ágape forma o tema principal de uma série completa de Parábolas.” Se esse é o caso, então os ouvintes das parábolas não podem tê-las entendido, pois eles certamente não compreendem Ágape na especificidade definida por Nygren, e assim as parábolas — de acordo com a lógica interna da posição de Nygren — não teriam sentido para os contemporâneos de nosso Senhor, Seus ouvintes.
            Ser preenchido com amor de e por Deus é o ideal monástico.
            No Evangelho de São Mateus (22:34 - 40) nosso Senhor é perguntado qual é o grande mandamento. “Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todo teu pensamento. Este é o primeiro e grande mandamento. E o segundo semelhante a este, é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Destes dois mandamentos depende toda lei e os profetas.” O ideal monástico e ascético é cultivar o amor do coração, da alma e da mente por Deus. O comentário de Anders Nygren deste texto em seu Ágape e Eros é característico de sua posição geral. “Foi reconhecido de há muito que a ideia de Ágape representa uma característica distinta e original do Cristianismo. Mas em que, precisamente, consistem essas originalidade e distinção? Essa questão tem sido respondida com frequência com referência ao Mandamento de Amor. O duplo mandamento ‘Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração’, e ‘Amarás o teu próximo como a ti mesmo’, tem sido tomado como o ponto-de-partida natural para a exposição do significado do amor Cristão. Porém, o fato é que se nós começamos com o mandamento, com Ágape como algo mandado, nós barramos nosso próprio caminho para o entendimento da ideia de Ágape ... Se o Mandamento do Amor pode ser dito ser especificamente Cristão, como sem dúvida pode, a razão tem que ser encontrada, não no mandamento como tal, mas no significado bem novo que Cristo deu a ele ... se chegar a um entendimento da ideia Cristã de amor simplesmente por referência ao Mandamento de Amor é portanto, impossível; tentar isso é se mover em círculo. Nós nunca descobriríamos a natureza do Ágape, amor no sentido Cristão, se nós não tivéssemos nada para nos guiar que não fosse o Mandamento do Amor ... Não é o mandamento que explica a ideia de Ágape, mas uma intuição sobre a concepção Cristã de Ágape que nos capacita a agarrar o significado Cristão do mandamento. Devemos então procurar outro ponto-de-partida” (pgs. 61- 63).
            Essa é realmente uma posição estranha para quem vem da tradição da sola Scriptura, pois sua posição não é de sola Scriptura, mas precisamente que a Escritura precisa ser interpretada — e aqui a interpretação vem não da matriz do Cristianismo primitivo, mas de longe, de uma interpretação que em grande extensão depende de uma interpretação do Cristianismo que chegou na história do Cristianismo aproximadamente 1500 anos depois do inicio do ensinamento Cristão, e isto com a assunção de que Nygren está seguindo a posição geral de Lutero. Em sua análise de certas interpretações de em que consiste o caráter único do amor Cristão, e em sua rejeição das interpretações do que constitui o caráter único do amor Cristão Nygren está, em parte, correto. “Este é, de fato, o defeito básico de todas as interpretações até agora consideradas; elas falham em reconhecer que o amor Cristão repousa numa base bem definida, positiva, própria. O que é, então, esta base?” Nygren se aproxima da essência do tema, mas negligencia o aspecto importante da ontologia humana, uma ontologia humana criada por Deus. “A resposta a esta questão pode ser encontrada no texto ... ‘Amai vossos inimigos.’ É verdade que amor pelos inimigos é uma variação de nossos sentimentos naturais imediatos, e pode por isso parecer mostrar o caráter negativo mostrado acima; mas se nós considerarmos o motivo que o sublinha nós veremos que ele é inteiramente positivo. O Cristão é comandado a amar os seus inimigos, não porque o outro lado ensina a odiá-los, mas porque há uma base e motivo para tal amor no fato concreto, positivo do amor de Deus pelos homens malignos. ‘Ele faz o sol brilhar sobre os maus e os bons.’ Eis aí porque nos é dito: ‘Amai vossos inimigos ... para que possais ser filhos de vosso Pai Que está no céu.’”
            O que Nygren escreve aqui é acurado. Mas, ele negligencia o significado da ontologia humana; isto é, que nós somos comandados a amar nossos inimigos porque há um valor espiritual dentro da própria estrutura da natureza humana criada por Deus, mesmo na natureza decaída, e que este valor espiritual deve ser encontrado em cada um de todos os homens, não importa quão obscuramente nós o percebamos. Se nós começarmos a amar nossos inimigos, nós iremos começar a perceber, nas características do inimigo, aspectos que estavam velados, que estavam obscurecidos pela cegueira de nosso ódio. Nós somos comandados a amar nossos inimigos, não só porque Deus ‘faz o sol brilhar sobre os maus e os bons’ mas Deus ama a humanidade porque há um valor na humanidade. Nygren escreve, (pg. 79), que ‘a sugestão de que o homem é possuidor por natureza de tal valor inalienável, levanta facilmente o pensamento de que é neste valor inigualável que o amor de Deus se assenta.’ Talvez seja impreciso afirmar que Nygren perde o tema central de que este valor no homem é criado por Deus, dado por Deus. É mais preciso afirmar que Nygren rejeita completamente o tema, e ele faz isso por sua doutrina teológica de Deus e do homem. De novo, isto é parte da grande divisão que separa certas igrejas dentro do diálogo ecumênico. Há uma diferença básica e fundamental de visão sobre a natureza de Deus e do homem. Um lado afirma que sua posição é consistente com o Cristianismo apostólico, com o depósito apostólico, e consistente com o ensinamento da vida da Igreja primitiva e da Igreja de todos os tempos. O outro lado começa com a Reforma. Ambos os lados alegam ter o apoio do Novo Testamento.
            Os escritos de Lutero sobre a Divina natureza do amor não são somente interessantes, mas também valiosos, não só penetrantes, mas em uma ênfase acurados. De fato, se considerarmos a doutrina de Lutero sobre o Divino amor em si, excluindo as suas outras doutrinas, especialmente as referentes à natureza do homem, a natureza da salvação, a natureza da justificação, a doutrina da predestinação e graça, encontra-se uma visão não diferente daquela do antigo Cristianismo Ortodoxo. Às vezes Lutero pode até mesmo parecer ser um pouco inclinado misticamente. A descrição bem conhecida de Lutero do amor Cristão como “eine quellende Liebe” (um amor jorrante sempre fluindo) é em si uma visão Ortodoxa. Para Lutero, como para os Padres da Igreja, esse amor não tem necessidade de nada, não é causado, não vem para a existência por causa de um objeto desejado, não é despertado por qualidades desejáveis de um objeto. Ele é a natureza de Deus. Mas, ao mesmo tempo, é Deus Que cria a humanidade e daí o amor de Deus por essa humanidade, apesar de não necessitado de nada e atraído por nada, ama a humanidade não por causa de um valor do homem, mas porque há um valor no homem porque ele é criado por Deus. Aqui está a diferença e é na verdade uma grande divisão quando se considera visões sobre outros assuntos intimamente ligados com a natureza do amor.

Perfeição, Filantropia, Oração, Jejum, E Castidade.

Na literatura monástica e ascética dos primeiros tempos Cristãos a palavra e ideia de perfeição são confrontadas com frequência. O monge busca perfeição; o monge quer começar a ser estabelecido no caminho que possa conduzir à perfeição. Mas é este o resultado do monasticismo? São as tendências monásticas e ascéticas do inicio do Cristianismo que trazem a ideia de perfeição, que trazem a ideia de luta e esforço espiritual? É nosso Senhor, e não os monges, que injeta o objetivo de perfeição na própria estrutura do pensamento Cristão inicial. No Evangelho de São Mateus (5:48) nosso Senhor comanda: “Sede vós perfeitos, como é perfeito o vosso Pai, Que está nos céus.”
            A vida monástica e ascética tradicional incluiu entre suas atividades filantropia, oração e jejum. Foram essas práticas impostas sobre um autêntico Cristianismo pelo monasticismo ou elas foram incorporadas na vida monástica e ascética do Cristianismo original? No Evangelho de São Mateus é de novo nosso Senhor e Redentor Que iniciou a filantropia, oração e jejum. Nosso Senhor poderia muito facilmente ter abolido estas práticas. Mas, ao invés de aboli-las, nosso Senhor as purificou, deu a elas o status correto dentro da vida espiritual que é praticá-las sem dar nenhuma demonstração, nem hipocrisia, nem glória por estar fazendo. É a perspectiva espiritual apropriada que nosso Senhor comanda. “Guardai-vos de fazer a vossa esmola diante dos homens, para serdes vistos por eles: aliás, não tereis galardão junto de vosso Pai, Que está nos céus” (6:1). “Quando pois deres esmola, não faças tocar trombeta diante de ti, como fazem os hipócritas nas sinagogas e nas ruas, para serem glorificados pelos homens. Em verdade vos digo que já receberam o seu galardão. Mas, quando tu deres esmola, não saiba a tua mão esquerda o que faz a tua direita. Para que tua esmola seja dada ocultamente: e teu Pai, Que vê em segredo, te recompensará publicamente” (6:2-4). E oração é ordenada que seja feita da mesma maneira para assegurar sua natureza espiritual.
            Nessa conjuntura Nosso Senhor instrui Seus seguidores a usar a oração do “Pai Nosso,” uma oração que é tão simples, no entanto, tão profunda, uma oração que contem em si uma glorificação do nome de Deus, contem também uma invocação da vinda do reino de Deus, uma oração que reconhece que a vontade de Deus inicia tudo e que sem a vontade de Deus o homem está perdido. É uma oração de humildade em que ela não pede nada além do sustento diário. É uma oração de solidariedade humana em perdão, pois ela pede para que Deus nos perdoe somente como nós perdoamos os outros, e nisso uma profunda realidade da vida espiritual é retratada, uma vida que une o homem a Deus somente se o homem se unir a outros homens, com a humanidade, em perdão. E a seguir tem o pedido para ser protegido das tentações, e se cair em tentação, o pedido para sermos libertados dela. Tão curta, tão simples, e no entanto, tão profunda tanto pessoal como cosmicamente. É o monasticismo uma distorção do Cristianismo autêntico porque os monges recitam o Pai Nosso pela instrução e pelo comando de nosso Senhor? Se o monasticismo usasse oração livre, espontânea, então ele poderia ser apontado como faltoso por não “seguir” o comando de nosso Senhor. Mas esse não é o caso. É o monasticismo um desvio por seu uso constante do Pai Nosso. Nosso Senhor foi específico: quando rezarem rezem isso. Ele não impediu outras orações, mas proeminência e prioridade são para serem dadas ao Pai Nossas. Na verdade, é certamente estranho para nosso Senhor restringir a frequência de oração. As “vãs repetições,” ou mais acuradamente em grego, a proibição de “proclamar palavras vazias, como os gentios, que pensam que pensam que por muito falarem serão ouvidos.” Isso é em essência diferente da intenção de nosso Senhor. E nosso Senhor diz mais sobre o assunto, um assunto considerado importante por Ele. No Evangelho de São Mateus (9:15) nosso Senhor deixa marcado que quando Ele for levado embora, então os Seus discípulos jejuarão. No Evangelho de São Mateus (17:21) nosso Senhor explica para Seus discípulos que eles são incapazes de expulsar a casta de demônios “porque essa casta de demônios não se expulsa senão pela oração e pelo jejum.” Esse versículo, é verdade, não está em todos os manuscritos antigos. Está, porém em suficientes manuscritos antigos e está contido no Evangelho de São Marcos (9:29). É obvio que nosso Senhor determina uma especial eficácia para oração e jejum.
            Castidade é um objetivo monástico e ascético. Não somente um celibato externo, mas também uma interna castidade de pensamento. É isso também algo imposto sobre o Cristianismo original e autêntico por um tipo helenístico de pensamento, ou está contido no depósito original e Bíblico do Cristianismo? De novo é nosso Senhor que coloca o caminho do celibato e da castidade. No Evangelho de São Mateus (19:10-12) os discípulos perguntam a nosso Senhor se é conveniente casar. “Nem todos podem receber esta palavra, mas só aqueles a quem foi concedido. Porque há eunucos que assim nasceram do ventre da mãe; e há eunucos que foram castrados pelos homens; e há eunucos que se castraram a si mesmos por causa do reino dos céus. Quem pode receber isto, receba-o.” O objetivo monástico e ascético simplesmente “segue” o ensinamento de nosso Senhor. O Cristianismo original jamais impôs celibato. Ele foi, precisamente como nosso Senhor colocou, somente para aqueles a quem foi concedido, somente para aqueles que fossem capazes de aceitar tal caminho. Mas o caminho era um caminho autenticamente Cristão de espiritualidade colocado por nosso Senhor. No inicio do Cristianismo, nem mesmo padres e bispos eram requeridos a serem celibatários. Era uma questão de escolha. Mais tarde a Igreja achou sábio requerer celibato dos bispos. Mas no Cristianismo Oriental celibato nunca foi exigência para alguém ser ordenado padre. A escolha de casar ou permanecer no celibato tinha que ser feita antes da ordenação. Se alguém já era casado antes da ordenação, então esse alguém era requerido que se mantivesse casado não obstante a Igreja antiga tenha testemunhado exceções a este caso, Se alguém não era casado antes da ordenação, então era requerido que continuasse no celibato. A Igreja Romana, não a Igreja Ortodoxa Oriental, estendeu o requerimento de celibato para os padres e teve um tempo muito difícil tentando forçar isto através dos séculos. Não se pode forçar nunca formas de espiritualidade sobre uma pessoa e esperar resultados espirituais frutíferos. As palavras de nosso Senhor soam com sabedoria — a quem foi concedido, para aqueles que podem viver nesta forma de espiritualidade.

Pobreza e Humildade.

Pobreza não é o objetivo mas o ponto inicial da vida monástica e ascética no Cristianismo do inicio. Foi este um precedente estabelecido por Santo Antonio, uma nova noção e movimento nunca antes contido no pensamento Cristão? De novo é nosso Senhor Que estabelece o valor espiritual da pobreza. No Evangelho de São Mateus (19:21) nosso Senhor comanda ao homem rico que havia afirmado que houvera mantido todos os mandamentos: “Se queres ser perfeito, vai, vende tudo que tens e dá-o aos pobres... e vem e segue-Me.” Não foi Santo Antonio que estabeleceu o precedente. Foi, isso sim, Santo Antonio que ouviu a palavra de nosso Senhor e a pôs em ação, que “fez a palavra do Senhor.” Foi Cristo, o Deus-Homem que pôs o ideal da perfeição, que nos comandou a sermos perfeitos (ver também 5:48), que pôs o ideal de pobreza como ponto-de-partida de uma certa forma de vida espiritual. Em outro lugar do Evangelho de São Mateus (13:44) Cristo marca um ponto similar, afirmando que se vende tudo em troca do reino dos céus. “O reino dos céus é semelhante a um tesouro escondido num campo que um homem achou e escondeu; e pelo gozo dele, vai, vende tudo quanto tem e compra aquele campo.”
            O Cristianismo todo exalta a humildade. Não deveria então ser uma surpresa que a espiritualidade monástica e ascética tivessem seu foco na humildade. No Evangelho de São Mateus (18:4) nosso Senhor proclama que “aquele que se tornar humilde como este menino, esse é o maior no reino dos céus.” Em outro lugar, (23:12), nosso Senhor diz que “o que se exaltar a si mesmo será humilhado: e o que a si mesmo se humilhar será exaltado.” A ênfase na humildade pode parecer auto-evidente. Por trás dela, no entanto, está uma realidade da natureza de Deus na qual poucos prestam atenção. Na Encarnação dois elementos bem centrais de qualquer espiritualidade são evidenciados claramente — o amor e humildade de Deus. A ideia de que a humildade tem raízes em Deus, pode parecer assombrosa. A humildade de Deus não pode, por certo, ser considerada na mesma luz que a humildade ascética, ou em qualquer forma de humildade humana. Porém, as formas humanas de humildade são derivadas da própria natureza de Deus, assim como o comando para amar está enraizado no amor de Deus para os homens. A humildade de Deus é precisamente que sendo Deus Ele deseja, Ele quer estar em comunhão com tudo e tudo é inferior a Deus. Isso tem grande significado teológico, pois revela o valor de todas as coisas criadas, um valor desejado por Deus. Há aqui até mesmo um paralelo com os santos que amaram os animais e as flores. E desta ideia, intrinsecamente deriva uma ideia da Encarnação e kenosis de Deus o Filho, pela qual se pode ver claramente a real origem Divina na ação de Cristo em ensinar os “outros.”
            Na própria noção de uma espiritualidade vertical uma preocupação com os outros é pressuposta. E enquanto alguém está ascendendo para Deus — uma abominação para Nygren — Seu companheiro homem deve ser incluído nas dimensões da espiritualidade. Através da Encarnação todas as formas de existência humana são santificadas. Através da Encarnação tanto o amor quanto a humildade de Deus são tornados conhecidos. E o homem é feito pra amar a Deus e seu companheiro na humanidade, porque o amor contém um valor absoluto e positivo, um valor derivado porque amor é a própria natureza de Deus. E o homem tem que experimentar a humildade porque humildade também pertence a Deus e assim seu valor é derivado de Deus. Mas ficar internamente cheio de amor e humildade não é fácil. Não é somente exigido o conhecimento do fato de que Deus é amor e humildade é Divina. É necessária a completa purificação da nossa natureza interna por Deus. E isso é uma luta, a luta espiritual que deve ser enfrentada para se entrar e se manter na realidade do amor e da humildade. O caminho do monasticismo e do ascetismo é um caminho autêntico, um caminho também ordenado por nosso Senhor.

Os Escritos de São Paulo e a Interpretação da Reforma.

Os escritos de ou atribuídos a São Paulo formam um ponto crítico na grande divisão inteira entre as Igrejas da Reforma e as Igrejas Católicas Ortodoxas e Católicas Romanas. A Epístola aos Romanos é uma das referências mais importantes desta controvérsia. Esta epístola e a Epístola aos Gálatas formam a base com a qual Lutero desenvolveu a sua fé, doutrina e justificação, uma doutrina que ele mesmo caracterizou em seu prefácio para seus escritos Latinos como um entendimento totalmente novo das Escrituras. Estas duas epístolas continuam a ser os pontos principais de referência para os teólogos contemporâneos da tradição da Reforma.
            Foi este novo entendimento das Escrituras que a rejeição do monasticismo obteve na Reforma. Em geral, não é exagero afirmar que este pensamento considera São Paulo como o único que entendeu a mensagem Cristã. Além disso, não é o próprio São Paulo nem o São Paulo do inteiro corpus de sua obra, mas sim o entendimento de Lutero sobre São Paulo. Dessa perspectiva, os autênticos interpretes dos ensinamentos e do trabalho redentor de nosso Senhor são São Paulo, como entendido por Lutero, depois Marcion, depois O Bem aventurado Agostinho, e depois Lutero. Marcion foi condenado pela Igreja inicial inteira. Agostinho, de certa forma, de fato, antecipa Lutero em certas posições, mas de modo algum na doutrina da justificação e no específico entendimento de fé de Lutero. É mais a doutrina da predestinação de Agostinho, de graça irresistível, e a sua doutrina da total depravação do homem contida em sua “novela” para citar São Vicente de Lerins — doutrina do pecado original que influenciou Lutero, que era ele próprio, um monge agostiniano.
            A rejeição do monasticismo definitivamente surgiu da ênfase colocada sobre a salvação como um dom grátis de Deus. Tal posição é completamente acurada, mas seu entendimento específico foi inteiramente contrário ao da Igreja do inicio. Que salvação era um dom grátis de Deus e que o homem era justificado por fé, nunca foi um problema para o Cristianismo do inicio. Mas, na perspectiva e ênfase de Lutero qualquer tipo de “obra,” especialmente a dos monges em sua luta ascética, contradizia a natureza grátis da graça e o dom grátis da salvação. Se alguém era justificado pela fé, então — aí segue a linha de pensamento de Lutero — esse alguém não era justificado por “obras.” Para Lutero justificação “pela fé” significava uma justificação extrínseca, uma justificação inteiramente independente de qualquer modificação interna das profundezas da vida espiritual da pessoa. Para Lutero “justificar” — dikaion — significava declarar alguém justo, não “fazer” esse alguém justo — é um apelo para uma justiça extrínseca que na verdade é uma ficção espiritual. Lutero criou um legalismo muito mais sério do que o legalismo que ele detectou no pensamento e prática Católico Romano do seu tempo. Além disso, a doutrina legalística da justificação extrínseca de Lutero é espiritualmente grave, pois é uma transação legal que na realidade não existe e não pode existir. Em nenhum lugar era a ênfase nas “obras” tão forte, pensou Lutero, como no monasticismo. Então o monasticismo tinha que ser rejeitado, e o foi. Mas Lutero leu demais sobre a ênfase de São Paulo na fé, sobre justificação pela fé, e sobre o dom grátis da graça da salvação. São Paulo está em controvérsia direta com o judaísmo, especialmente em sua Epístola aos Romanos.
São as “obras da lei,” a lei como definida e interpretada e praticada pelo judaísmo no tempo de São Paulo. Nosso Senhor tem a mesma reação para com o entendimento externalizado e mecânico da lei. Na verdade, o próprio texto da Epístola aos Romanos revela em cada passagem que São Paulo está comparando a lei externa do judaísmo com a novidade do entendimento espiritual da lei, com a novidade da revelação de Deus em Jesus Cristo através da Encarnação, Morte e Ressurreição de nosso Senhor, Deus tornou-Se homem. Deus entrou na história humana o que é de fato uma novidade radical. Mas entender mal a crítica de São Paulo às “obras,” pensando que São Paulo está se referindo aos “obras” comandadas por nosso Senhor, ao invés do entendimento judaico de “obras da lei” é uma má leitura de natureza fundamental. Porém, é verdade que Lutero tem um ponto ao considerar a direção específica na qual o sistema-de-mérito Católico Romano tinha ido como um ponto de referência similar ao sistema legal judaico. Como resultado do passado de Lutero, e do seu meio teológico, quando ele lia qualquer coisa em São Paulo a respeito de “obras” ele imediatamente pensava em sua experiência como monge e no sistema de méritos e indulgências no qual tinha sido criado.
Deve ser enfatizado com força que Lutero de fato protege um aspecto da salvação, a causa e fonte em si da redenção e da graça. Mas ele negligencia o outro lado, o aspecto da participação do homem nesse dom grátis da Divina iniciativa e graça. Lutero teme qualquer ressurgência do sistema católico romano de mérito e indulgência, ele teme qualquer tendência que possa se constituir numa verdadeira atitude Pelagiana, qualquer tendência que venha permitir que o homem acredite que é a causa ou a fonte, ou melhor, o vetor principal da salvação. E aqui Lutero está correto. A distinção de Nygren sobre Eros-Ágape está correta neste contexto, pois qualquer espiritualidade que omite o Ágape e se concentra somente no Eros, no esforço do homem para vencer a influência de Deus, é fundamentalmente não-Cristã. Mas o assunto não é tão simples. Ambos os extremos são falsos. Deus quis livremente um sinergético caminho-de-redenção no qual o homem deve participar espiritualmente. Deus é o ator, a causa, o iniciador, aquele que completa toda atividade redentora. Mas é o homem que deve responder espiritualmente ao dom grátis da graça. E nessa resposta existe um lugar autêntico para a espiritualidade do monasticismo e do ascetismo, os quais não tem nada a ver com as “obras da lei,” ou com o sistema de mérito e indulgência.

Romanos.

Em sua Epístola aos Romanos São Paulo escreve na própria introdução (1:4-5) que através de Jesus Cristo “recebemos a graça e o apostolado, para a obediência da fé entre todas as gentes pelo Seu Nome.” A noção de “obediência na fé” tem um significado para São Paulo. É muito mais que um simples reconhecimento de uma fé colocada dentro de alguém por Deus. É ao invés, uma noção ricamente espiritual, que contém dentro dela uma completa espiritualidade de atividade de parte do homem — não que a atividade vá vencer a graça de Deus, mas precisamente que a atividade espiritual é a resposta à graça de Deus, realizada com a graça de Deus, para ser preenchido com a graça de Deus. E será uma “obra” espiritual em progresso, que não pode ser nunca paralisado, e uma “obra” totalmente estranho às “obras” da lei judaica.
            São Paulo escreve (2:6) que Deus “recompensará cada um segundo as suas obras.” Se São Paulo estivesse tão preocupado com a palavra “obras,” se ele temesse que os leitores Cristãos de sua epístola pudessem interpretar “obras” em um sentido totalmente diferente do que ele pretendia, ele teria certamente sido mais cauteloso. Mas São Paulo distingue claramente entre as “obras” da lei judaica e as “obras” do Espírito Santo requeridas de todos os Cristãos. Em consequência, é difícil confundir essas duas perspectivas, e é significativo que a Igreja inicial nunca tenha confundido, pois eles entendiam o que São Paulo escreveu. Aconteceram às vezes — apesar da lucidez do pensamento de São Paulo — tendências de cair não na interpretação unilateral de Lutero, mas ao contrário, de cair algo espontaneamente num tipo-Eros de esforço.
            São os “praticantes da lei que serão justificados” (2:13). A noção de “praticantes” implica em ação, atividade. Em outro lugar, na mesma epístola (5:2) São Paulo escreve que através de nosso Senhor Jesus Cristo “temos entrada pela fé a esta graça, na qual estamos firmes,.” A própria ideia de “entrada pela fé” é dinâmica e implica em atividade espiritual por parte da humanidade.
            Depois da longa proclamação da graça de Deus, e da impotência das “obras da lei” em comparação com as “obras” da nova realidade do Espírito, São Paulo recorre à tradicional exortação espiritual (6:12 e segs.) “Não reine portanto o pecado em vosso corpo mortal, para lhe obedecerdes em suas concupiscências; nem tão pouco apresenteis vossos membros ao pecado por instrumentos de iniquidade.” A exortação pressupõe que o homem tem algum tipo de atividade espiritual e controle sobre sua existência interior. O próprio uso da palavra “instrumentos” invoca a ideia de luta, de guerra espiritual, a própria natureza da “prova severa” do monasticismo.
            No mesmo capítulo (6:17) São Paulo escreve: “Mas graças a Deus que, tendo sido servos do pecado, obedecestes de coração à forma de doutrina a que fostes entregues.” No segundo capítulo da Epístola aos Romanos (2:15) São Paulo escreve sobre o aspecto universal da “lei” que “está escrita em seus corações,” da humanidade, um pensamento com profundas implicações teológicas. Usando a imagem do coração São Paulo está enfatizando o aspecto mais profundo da vida interior da humanidade, pois este era o uso da imagem do coração entre os hebreus. Quando ele escreve que eles obedeceram “de coração,” São Paulo está atribuindo algum tipo de atividade espiritual para a “obediência” que brota “do coração.” E a que eles passaram a ser obedientes? A uma forma ou padrão de ensinamento ou doutrina entregue a eles — este é precisamente o depósito apostólico, o corpo do ensinamento inicial Cristão ao qual eles responderam e se tornaram obedientes. E fazendo assim, eles se tornaram “escravizados pela justiça,” a justiça da nova lei, da vida do Espírito (6:18). E o “fruto” de se tornarem escravizados a Deus é precisamente santificação que conduz à vida eterna (6:22). Através é um processo, através é uma atividade espiritual dinâmica por parte do homem. São Paulo se torna mais explícito na distinção sobre a velha e a nova lei (7:6). “Mas agora estamos livres da lei, pois morremos para aquilo em que estávamos retidos; para que sirvamos em novidade de espírito, e não na velhice da letra.”
            São Paulo escreve que “nós somos filhos de Deus. E, se nós somos filhos, somos logo herdeiros também, herdeiros de Deus e co-herdeiros de Cristo” (8:16b-17). Mas tudo isto tem uma condição, tem uma provisão, pois há um importantíssimo “se é certo” “Se é certo que com Ele padecemos, para que também com Ele sejamos glorificados.” Nossa glorificação, segundo São Paulo, é contingenciada por um poderoso “se” e este “se” nos conduz para a realidade espiritual, a realidade espiritual do “co-sofrimento.” O próprio uso da palavra “co-sofrimento” pressupõe a realidade da ideia do “co-sofrimento” e ambas pressupõe uma ação ou atividade espiritual ativa, dinâmica por parte daquele que co-sofre, senão não há significado no “co.”
            Na Epístola aos Romanos (12:1) São Paulo usa linguagem que não teria significado se o homem fosse meramente um objeto passivo no processo redentor, se a justificação por fé fosse uma ação que teria lugar somente no nível Divino. “Rogo-vos pois, irmãos, pela compaixão de Deus, que apresenteis os vossos corpos em sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, que é o vosso culto racional.” São Paulo está pedindo ao Cristão para apresentar, uma realidade que pressupõe e requer atividade humana. Mas não só “apresentar” mas “apresentar” o corpo como um sacrifício vivo, tão santo, tão aceitável ou agradável a Deus. E isto São Paulo considera nosso “culto racional” ou nossa “adoração espiritual.” A ideia e a linguagem falam por si. Usando o imperativo, São Paulo nos comanda: “E não vos conformeis com este mundo, mas transformai-vos pela renovação do vosso entendimento, para que experimenteis qual seja a boa, agradável, e perfeita vontade de Deus.” Tomada em si e fora do contexto esta linguagem poderia ser mal interpretada como Pelagiana, pois aqui é o homem que está transformando a mente, é o homem que está comandado a ativar a vida espiritual. Tal interpretação é, por certo, incorreta mas revela o que se pode fazer com a totalidade do pensamento teológico de São Paulo se não se entender o conjunto todo, se não se entender que a visão dele é profundamente sinergética.
            Sinergia não significa que duas energias são iguais. Significa, isso sim, que existem duas vontades — uma, a vontade de Deus que precede, acompanha e completa tudo que é bom, positivo, espiritual e redentor, uma que quis que o homem tivesse uma vontade espiritual, uma participação espiritual no processo redentor; a outra é a vontade do homem que deve responder, cooperar e “co-sofrer.” Em 12:9, São Paulo nos exorta a “nos apegarmos ao bem.” E em 12:12 nos exorta a “perseverar na oração.” Tais posições certamente não excluem as espiritualidades monástica e ascética mas as pressupõe.
  

I e II Coríntios.

Celibato é uma parte da vida monástica e ele também tem sua fonte nos ensinamentos do Novo Testamento. Em I Coríntios 7:1-11 São Paulo encoraja tanto o casamento quanto o celibato — ambos são formas de espiritualidade Cristã, e São Paulo tem muito a dizer a respeito de casamento em suas outras epístolas. Mas seu ponto é que celibato é uma forma de espiritualidade para alguns, e que por isso ele não pode ser excluído das formas de espiritualidade dentro da Igreja. No versículo 7 São Paulo escreve que gostaria que todos fossem como ele. Mas ele constata que cada pessoa tem seu próprio dom de Deus. “Digo, porém, aos solteiros e às viúvas, que lhes é bom se ficarem como eu. Mas, se não podem conter-se, casem-se (vers. 8 e 9). São Paulo sumarizado: “aquele que decidiu em seu coração se manter virgem, está bem. Assim, portanto, ambos, o que casa com sua noiva (virgem) faz bem, e o que não se casa faz melhor.” A prática monástica do celibato está precisamente não excluída pelo Novo Testamento. Ao contrário, ela é até encorajada tanto pelo Senhor, quanto por São Paulo — e sem condenação ao casamento. A decisão não pode ser forçada. Ela deve, isto sim, vir do coração. E, de fato, não é para todos.
            A comparação da vida espiritual com a disputa de uma corrida e com uma luta está ao longo do Novo Testamento. Sem diminuir de sua visão teológica a base de Deus—isto é, que Deus inicia tudo — São Paulo escreve em I Coríntios 9:24- 27 de uma maneira que tomada de per si, de fato pareceria Pelagiana, pareceria realmente com um pensamento em que toda essência da salvação dependeria do homem. Mas no contexto total de sua teologia não há contradição, pois há sempre duas vontades na redenção — a Divina que inicia, e a humana, que responde e está na própria resposta que recebeu. “Não sabeis vós que os que correm no estádio, todos na verdade correm, mas um só leva o prêmio? Correi de tal maneira que o alcanceis. E todo aquele que luta de tudo se abstém; eles o fazem para alcançar uma coroa corruptível, nós, porém, uma incorruptível. Pois eu assim corro, não como a coisa incerta: assim combato, não como batendo no ar. Antes subjugo o meu corpo, e o reduzo à servidão, para que, pregando aos outros, eu mesmo não venha de alguma maneira ficar reprovado.” Nesse texto nós encontramos a corrida — a corrida espiritual — e o prêmio, nós encontramos a estrutura gramatical e de pensamento “para alcançar,” uma estrutura que implica em contingência e não em certeza. Nós encontramos a corrida como uma luta espiritual na qual “autocontrole em tudo” deve ser exercitado. E então, São Paulo descreve sua própria batalha espiritual — ele trata seu corpo severamente, ele o conduz com se fora a um escravo, e com que propósito? Para que ele não venha a ficar reprovado. A passagem inteira é muito monástica e ascética em seu conteúdo.
            Apesar da certeza de São Paulo sobre a realidade objetiva de a redenção ter vindo através de Cristo, como um dom Divino, ele não considera que seu próprio destino espiritual esteja incluído nessa redenção objetiva, que está aqui agora, a menos que ele participe nela — e até o final da corrida. Em 10:12 ele nos previne “aquele pois que cuida estar em pé, olhe não caia.” Em 11:28 ele escreve: “Examine-se pois o homem a si mesmo, ...” Nesse texto o “examine-se” está entre os mais sérios desses contextos, pois é mencionado em conexão com a Santa Eucaristia, da qual se fala tão objetivamente que se se “comer esse pão” ou “beber desse cálice do Senhor,” “indignamente” esta pessoa “será culpada do corpo e do sangue do Senhor” e “trará condenação para si próprio” — por esta razão, continua São Paulo, muitos estão fracos, doentes, e muitos morreram. Mas nosso foco aqui está no autoexame, naqueles que cuidam estar em pé. Este de novo é um aspecto integral da vida monástica e ascética; isto é, um exame constante da vida espiritual. Em II Coríntios 13:5 São Paulo enfatiza o autoexame: “Examinai-vos a vós mesmos , se permaneceis na fé; provai-vos a vós mesmos.”
            Em I Coríntios 15:1-2 São Paulo introduz um significativo “se” e “também.” “Também vos notifico, irmãos, o Evangelho que já vos tenho anunciado; o qual também recebestes, e no qual também permaneceis. Pelo qual vós também sois salvos se o retiverdes tal como vo-lo tenho anunciado.”
            Em I Coríntios 14:15 São Paulo fala de orar com o espírito e com a mente, um pensamento que tece o seu caminho através da literatura monástica e ascética. O uso da mente em oração encontra sua mais completa expressão no uso controverso da “mente” no pensamento de Evagrio Ponticus. O uso, mesmo dentro do seu contexto geral no capítulo, é claro. “Orarei com o espírito, mas também orarei com o entendimento (mente); cantarei com o espírito, mas também cantarei com o entendimento.”
            O hino para o amor, Ágape, de São Paulo usa inteiro o I Coríntios 13. Apesar de interpretações mais tardias do uso da palavra “fé” neste capítulo, especificamente as interpretações que entraram no pensamento Cristão com a Reforma, não há mal-entendido sobre esse “hino ao amor” na Igreja do início; de fato, na história do pensamento Cristão até a Reforma ele era entendido bastante diretamente. É só através de um convulsionado método exegético de interpretação imposto por um específico — e novo — entendimento teológico que esse grande “hino ao amor” teve que ser entendido em distinguindo diferentes significados ligados à palavra “fé.” “Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos. E ainda que eu tivesse o dom da profecia. E conhecesse todos os mistérios e toda a ciência. E ainda que tivesse toda a fé, de maneira tal que transportasse os montes. Ainda que distribuísse toda a minha fortuna para sustento dos pobres, e ainda que entregasse meu corpo para ser queimado — ainda que eu tivesse tudo isso, mas não amor, então seria “nada,” seria “como o metal que soa ou como o sino que tine” “nada disso me aproveitaria.” São Paulo é bem explicito quanto ao que o amor é. “O amor é sofredor, é benigno, não é invejoso, não se trata com leviandade, não se ensoberbece, não se porta com indecência, não busca os seus interesses, não se irrita, não suspeita mal. O amor não folga com a injustiça, mas folga com a verdade. Tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. O amor nunca falha: mas havendo profecias, serão aniquiladas; havendo línguas cessarão, havendo ciência, desaparecerá... Agora, pois permanecem a fé, a esperança e o amor, estas três, mas a maior destas é o amor.” O objetivo da luta monástica e ascética, da “prova difícil,” é amor — amar Deus, amar a humanidade, amar todas as coisas criadas, ser penetrado pelo amor de Deus, participara no amor, que é Deus, que flui de Deus, e entrar em união com Deus, com amor. Com frequência a literatura monástica fala em “realizar” esse amor, como se fosse trabalho do homem. Mas esse não é o contexto total de amor em literatura monástica, nem mesmo naqueles textos que parecem dizer que tudo não é nada mais do que esforço do homem na “prova.” Essa linguagem é usada porque é espontânea com a natureza espiritual.
            Essa linguagem é usada porque ela corre paralela com aquele conhecimento assumido — o de que Deus é a fonte de tudo. E ainda São Paulo mesmo, com frequência, usa linguagem que poderia vir diretamente de afirmações monásticas. É verdade que, ambas seriam tomadas fora do seu contexto total, mas é verdade que são usadas duas linguagens — a linguagem referente a Deus como fonte, como o iniciador, a graça de Deus, o dom de toda espiritualidade; e a linguagem que se concentra na atividade do homem, na resposta do homem ao amor e trabalho redentor de Deus em Jesus Cristo e através do Espírito Santo. Quando uma linha de pensamento está sendo usada, ela de modo nenhum, nega a outra linha de pensamento. É bem o oposto, pois as literaturas monásticas e ascéticas só podem falar da atividade do homem, se estiver pressuposto que Deus realizou a atividade redentora através de nosso Senhor, e que Deus está trabalhando no homem através do Espírito Santo. Senão, tudo que está escrito é sem sentido, temporária e definitivamente. O Comando de São Paulo em I Coríntios 14:1 a “seguir o amor, e procurar com zelo os dons espirituais” é correspondente diretamente a espiritualidade monástica e ascética.
            Em II Coríntios 2:9 São Paulo escreve no mesmo espírito que um abade pode empregar com seus noviços: “E para isso vos escrevi também, para por esta prova saber se sois obedientes em tudo.” Obediência é um tema e realidade importante na “prova” monástica e ascética e o próprio tema da obediência é mencionado com frequência no Novo Testamento.
            As literaturas monástica e ascética usam com frequência os termos “cheiro” e “aroma” e de novo, a fonte é o Novo Testamento. Em II Coríntios 2:14-15 São Paulo escreve: “... manifesta em todo o lugar o cheiro do Seu conhecimento. Porque para Deus somos o bom cheiro de Cristo, nos que se salvam e nos que se perdem. Para estes certamente cheiro de morte para a morte: mas para aqueles cheiro de vida para a vida.”
            Em II Coríntios 3:18 São Paulo usa uma expressão que com frequência é encontrada na literatura ascética — “de glória em glória.” “Mas todos nós, com cara descoberta, refletindo como um espelho a glória do Senhor, somos transformados de glória em glória na mesma imagem, como pelo Espírito do Senhor.” A estrutura verbal grega em todo Novo Testamento não pode ser suficientemente enfatizada, pois ela carrega uma atividade dinâmica que é raramente encontrada em outras línguas e em traduções. Nesse texto a ênfase está no processo de “estarmos sendo mudados.” Em outros lugares a ênfase está, com frequência, em “estarmos sendo salvos” — ao invés de “estamos mudados” ou “estamos salvos.” Mas, principalmente quando o processo está em foco, o dinamismo é expresso pela estrutura verbal de “estarmos sendo salvos.” Nesse texto é significativo que a natureza objetiva é expressa por “tendo sido descobertos,” enquanto o processo em andamento de nossa participação no processo de salvação é expresso por “estamos sendo transformados.” Aqui está expresso o dinamismo da sinergia.
            Em II Coríntios 4:16 São Paulo mais uma vez enfatiza o dinamismo e processo da realidade espiritual no homem. .”.. o interior (vida) se renova de dia em dia.” A vida monástica tenta responder a tal texto por regularidade diária de oração, meditação, auto exame e veneração — precisamente para tentar “renovar” diariamente nossa vida espiritual “interior.” Em 10:15 o aspecto dinâmico do crescimento é enfatizado e precisamente em referência a “fé” e “regra.” .”.. antes tendo esperança de que, crescendo a vossa fé, seremos abundantemente engrandecidos entre vós, conforme a nossa regra.” Em 4:6 São Paulo de novo coloca a profundidade da vida espiritual do homem no “coração,” algo que o monasticismo Oriental desenvolverá ainda em sua vida de oração.
            O capítulo cinco inteiro de II Coríntios é um texto excepcionalmente importante. Nele, como em outros lugares, São Paulo usa linguagem que, quando usada por outros, aflige dolorosamente muitos eruditos que trabalham com a perspectiva da Reforma — ele usa a noção de “agradar a Deus,” algo que alguns eruditos acham que é indicativo de uma solicitação do homem para “ganhar” o favor de Deus. Mas quando São Paulo usa tal linguagem ela passa em silêncio, ela passa sem objeção — precisamente porque São Paulo estabeleceu sua posição de que Deus é a fonte de tudo. Mas as literaturas monástica e ascética também pressupõem que Deus inicia e é a fonte de tudo. Mas está na própria natureza da vida espiritual diária no monasticismo e na espiritualidade ascética focar na atividade do homem. É precisamente foco, não posição teológica. “Pelo que muito desejamos também ser-Lhe agradáveis, quer presentes, quer ausentes. Porque todos devemos comparecer ante o tribunal de Cristo, para que cada um receba segundo o que tiver feito por meio do corpo, ou bem, ou mal. Assim que, sabendo o temor que se deve ao Senhor, persuadimos os homens à fé.” Em II Coríntios 11:15 São Paulo escreve que cada um “terá seu fim conforme as suas obras.” Também não é a primeira vez que o Novo Testamento usa a palavra “feito,” uma palavra que se tornou sistematizada no monasticismo. Depois de uma profunda exposição sobre a iniciativa de Deus no trabalho redentor de Cristo (5:14-20), no qual São Paulo escreve que “Tudo isso provém de Deus que nos reconciliou consigo mesmo por Jesus Cristo.” São Paulo escreve no versículo 20: “que vos reconcilieis com Deus.” Além disso, ele não só usa a forma imperativa, como a precede com “Rogamos-vos pois da parte de Cristo.” Sua linguagem aqui se torna sem sentido a menos que haja atividade espiritual por parte do homem. E o que é mais, São Paulo usa uma estrutura muito interessante em relação à “justiça de Deus,” pois ele escreve que o trabalho redentor de Cristo foi realizado “para que Nele fossemos feitos justiça de Deus.” Aqui o significado está em que “fossemos feitos” e não em que “somos” ou em que “fomos feitos.” Está implícita uma sinergia dinâmica. Isso é mais enfatizado em 6:1: “E nós, cooperando também com Ele, vos exortamos a que não recebais a graça de Deus em vão.” E São Paulo, a seguir, cita Isaias 49:8, no qual é dito que Deus “ouve” e “ajuda.”
            Em II Coríntios 6:4-10 São Paulo escreve o que poderia ser um guia para a vida espiritual monástica. “Antes, como ministros de Deus, tornando-nos recomendáveis em tudo: na muita paciência, nas aflições, nas necessidades, nas angustias, nos açoites, nas prisões, nos tumultos, nos trabalhos, nas vigílias, nos jejuns, na pureza, na ciência, na longanimidade, na benignidade, no Espírito Santo, no amor não fingido. Na palavra da verdade, no poder de Deus, pelas armas da justiça, à direita e à esquerda. Por honra e por desonra, por infâmia e por boa fama... como morrendo, e eis que vivemos... como contristados, mas sempre alegres: como pobres, mas enriquecendo a muitos: como nada tendo, e possuindo tudo.”
            As vigílias, os jejuns, a pureza, a gnosis ou conhecimento — isso tudo precisa estar refletido nas vidas monástica e ascética. Além disso, São Paulo usa a imagem de guerra e se refere a “armas da justiça.” A linguagem usada por São Paulo nesta passagem só pode ter significado se o homem participar sinergicamente no processo redentor. Se a doutrina da “justiça” no pensamento de São Paulo tem somente um significado unilateral — isto é, a “justiça de Deus,” que é, por certo, a fonte de toda justiça — então, porque a conversa de “armas da justiça” colocadas nas próprias mãos, direita e esquerda, do homem? Se o homem é somente “considerado justo” pelo “sacrifício vicarial” de nosso Senhor Jesus Cristo, qual a necessidade de falar de “armas da justiça,” se não existir um segundo aspecto no processo redentor que ontologicamente inclui a participação espiritual do homem? Em II Coríntios 10:3-6 continua com referencia à “guerra” e de novo enfatiza “obediência.” “Porque andando na carne, não militamos segundo a carne. Porque as armas da nossa milícia não são carnais, mas sim poderosas em Deus, para destruição das fortalezas; Destruindo os conselhos, e toda altivez que se levanta contra o conhecimento de Deus, e levando cativo todo entendimento à obediência de Cristo; E estando prontos para vingar toda desobediência, quando for cumprida a vossa obediência.”
            São Paulo escreve em II Coríntios 7:1 sobre purificação, sobre aperfeiçoamento da santificação e sobre “temor de Deus,” Depois de se referir ao fato de que temos “tais promessas,” ele exorta: “Purifiquemo-nos de toda a imundícia da carne e do espírito, aperfeiçoando a santificação no temor de Deus.” Essa exortação é precisamente o que as vidas monástica e ascética tentam implementar. Em 13:9 São Paulo escreve: “e o que desejamos é a vossa perfeição.” Para que alguém seja aperfeiçoado, esse alguém tem que já estar num certo nível previamente. O texto dá testemunho da natureza dinâmica da fé, da vida espiritual em Cristo, do levantamento e queda, e então do aperfeiçoamento.
            Em II Coríntios 7:10 São Paulo fala em termos muito similares àqueles encontrados em literaturas monástica e ascética, pois ele fala de “tristeza” que opera “arrependimento” que conduz à “salvação.” “Porque a tristeza segundo Deus opera arrependimento para a salvação, da qual ninguém se arrepende.” São Paulo contrasta essa “tristeza piedosa” com a “tristeza do mundo que opera a morte.” O tema “aflição” e “tristeza” sobre o pecado de alguém — precisamente “tristeza de acordo com Deus” ou “tristeza piedosa” — é uma constante na vida espiritual monástica.
            São Paulo termina o texto de II Coríntios com uma exortação final. “Sede perfeitos, sede consolados, sede de um mesmo parecer, vivei em paz; e o Deus de amor e de paz será convosco.” Aqui a ênfase é novamente em “perfeição.” A sequência da linguagem de São Paulo — se tomada de per si e fora de contexto — poderia facilmente ser mal interpretada como se o homem causasse a ação de Deus, pois ele escreve: “vivei em paz e.” É precisamente esse e que introduz a atividade de Deus. E o Deus de amor e paz “será convosco,” se vós conseguirdes paz—então seria bem assim que este texto poderia ser interpretado, se nós não possuíssemos o corpo dos textos de São Paulo. O que poderia ter acontecido com o pensamento de São Paulo, é o que normalmente acontece com o pensamento expresso nas literaturas monástica e ascética.

Gálatas.

Ao lado da Epístola aos Romanos, a Epístola de São Paulo aos Gálatas é outra obra do corpo de trabalhos de São Paulo citada com muita frequência pelos teólogos da Reforma Luterana e Calvinista e pelos teólogos que seguiram a esses nestas tradições teológicas. Elas foram também os dois trabalhos mais citados pelo Bem-aventurado Agostinho para apoiar sua doutrina de graça irresistível e predestinação. Mas encontra-se o mesmo problema em Gálatas; isto é, uma segunda linha de pensamento que, tomada de per si, poderia ser interpretada num sentido Pelagiano. O ponto aqui é, por certo, que ambas as visões são unilaterais, que o pensamento de São Paulo é muito mais rico do que as interpretações unilaterais se permitem, muito mais realista tanto para com a glória de Deus, quanto para com a tragédia da experiência do homem no mal, corrupção e morte. Mas São Paulo não só exalta a glória de Deus, o poder e iniciativa da graça, mas também a alegria de uma redenção objetiva em que cada pessoa deve participara para a redenção do homem ser completa.
            No primeiro capítulo dos Gálatas São Paulo no versículo 10 usa linguagem que implica na procura do favor de Deus. “Porque, persuado eu agora a homens ou a Deus? Ou procuro agradar a homens?” Num certo ponto, em Gálatas 4:9 São Paulo se pega caindo no muito compreensível uso da linguagem humana: “Mas agora conhecendo a Deus, ou antes, sendo conhecidos de Deus...” Imprecisão de linguagem ocorre até mesmo com São Paulo.
            O segundo capítulo de Gálatas provê iluminação do litígio da controvérsia central na teologia de São Paulo. No contexto São Paulo está se referindo à hipocrisia de São Pedro em Antioquia, pois ele comeu com os gentios até que aqueles do partido da “circuncisão” chegaram de Jerusalém. Nesse momento São Pedro se retirou dos gentios, “temendo os que eram da circuncisão.” São Paulo desafia São Pedro cara a cara. De novo a controvérsia toda é entre as “obras da lei” e as “obras do Espírito,” entre as leis do Judaísmo e as leis espirituais de Cristo como resultado direto do Seu Divino trabalho redentor. É daí, nesse contexto, que São Paulo traz a doutrina da justificação para a discussão. No versículo 16 São Paulo escreve: “Sabendo que o homem não é justificado pelas obras da lei, mas pela fé em Jesus Cristo, temos também crido em Jesus Cristo, para sermos justificados pela fé de Cristo, e não pela obras da lei; porquanto pelas obras da lei nenhuma carne será justificada.” Na construção grega usada por São Paulo existe um dinamismo, pois temos crido “para sermos justificados” e “pela fé.” Essa última expressão contém respiração, expansão da vida espiritual gerada por fé. É uma expressão rica e sua totalidade e dinamismo não podem ser diminuídos por uma interpretação reducionista. E o próprio uso de “para” tem implicações teológicas, assim como a construção “sermos justificados.” São Paulo poderia muito bem ter escrito que nós acreditamos e daí somos justificados.
            Mas isso não foi o que ele escreveu. A realidade objetiva da redenção, a realidade objetiva da humanidade sendo justificada por Cristo é uma coisa. A realidade subjetiva de cada pessoa participando neste processo redentor de justificação já realizado, de sendo realmente “justo” com Deus é outra dimensão, uma dimensão que requer e se dirige para a composição espiritual inteira do homem. No próprio texto seguinte São Paulo escreve “pois, se nós, que procuramos ser justificados em Cristo.” Em 5:5 ele pode escrever “Porque nós pelo espírito da fé aguardamos a esperança da justiça.” Qual é o significado ontológico de “esperança de justiça” se “justiça” é “imputada” a nós como se fosse uma transação legal, e se é a “justiça passiva” de Deus que nos “justifica”? Não, a visão de São Paulo é muito mais profunda. A “esperança de justiça” é precisamente a esperança de participar na objetiva “justiça de Deus” que agora é livremente dada por Deus e através de Cristo. Mas nós “temos esperança” porque há uma “obra” para nós fazermos para agarrarmos e participar desta justiça eternamente. Deus cria em Sua liberdade. Deus cria o homem com essa imagem de liberdade. Cristo aceita a Cruz em liberdade. Liberdade é a base da criação e da redenção. E a liberdade do homem, ainda que enfraquecida, ainda pode ser inspirada pelo dom grátis da Graça. E nessa liberdade o homem deve, como escreve São Paulo em sua Epístola aos Filipenses 2:12, “operar a sua salvação com temor e tremor.” Não pode ser negado que as espiritualidades monástica e ascética tomaram isso seriamente.
Em Gálatas 5:1 São Paulo escreve “Estais pois firmes na liberdade com que Cristo nos libertou.”
            O significado teológico total de tudo que teve lugar com a vinda de Cristo, na Encarnação do Deus-Homem, na Sua vida, Seus ensinamentos, Sua morte, Sua Ressurreição, Seu estabelecimento da Igreja e a vida sacramental mística em Igreja, Sua Ascensão, Seu envio do Espírito Santo, e Sua Segunda Vinda e Julgamento — tudo isto alterou radicalmente a velha lei das obras, e o significado ficou claro para a Igreja inicial. É verdade que o que São Paulo diz sobre as “obras da lei” pode ser aplicado por qualquer forma de Cristianismo que se desvie do fiel da balança, que se desvie das autênticas “obras do Espírito,” substituindo-as por uma atitude mecânica e mecanicista. E em Gálatas 3:26-27 São Paulo imediatamente conecta “justificação pela fé” com o místico sacramento do batismo. “Porque todos sois filhos de Deus pela fé em Cristo Jesus. Porque todos quantos fostes batizados em Cristo já vos revestistes de Cristo.” Dentro deste contexto qual a distinção entre a “justificação pela fé” e o “pela fé” ser “batizado em Cristo,” e, daí ter sido “revestido de Cristo”?
            São Paulo está se dirigindo a Cristãos, a aqueles que foram batizados, aqueles que aceitaram a fé. Apesar de toda sua linguagem sobre “justificação pela fé” sobre “ser revestido de Cristo” através do batismo, sobre o aspecto objetivo da redenção ter sido realizado, São Paulo ainda pode escrever em Gálatas 4:19 que trabalha até sentindo dores como de parto “até que Cristo seja formado em vós.” O que pode isso significar a não ser que o processo redentor do homem é de luta, de levantamento e queda, de dinamismo espiritual continuo? Em 5:7 ele escreve que “eles corriam bem” e pergunta “quem vos impediu?” — invocando de novo a imagem de uma disputa.
            Em Gálatas 5:14 São Paulo repete o comando de amor de Cristo, um pensamento não estranho a São Paulo, especialmente quando se considera seu “Hino ao Amor (Ágape)” em I Coríntios 13. “Porque toda a lei se cumpre numa só palavra, nesta: Amarás ao teu próximo como a ti mesmo.”
            Ele então distingue as “obras do Espírito” das “obras da carne,” explicitamente ligando estas últimas com a velha lei. E então, ele de novo exorta e comanda do ponto-de-vista do realismo da vida espiritual. (5:25). “Se vivemos em Espírito, andemos também em Espírito.” Qual o significado de tal exortação? Ela tem um significado baseado no realismo somente se o “viver no Espírito” se referir a totalidade do trabalho redentor objetivo de Cristo agora realizado e disponível para os homens, uma redenção que circunda os homens pela vida da Igreja na qual eles vivem, mas uma redenção na qual eles devem participar ativamente, na qual eles devem “andar,” se quiserem obter e receber a obra final da redenção, a união do homem com Deus em amor, em bondade, em verdade.
            O “andar” é uma óbvia expressão de atividade, um movimento para um objetivo. Em Gálatas 6:2 São Paulo liga o comando de amor e o “andar no Espírito” com a “lei de Cristo” e o “cumprimento desta lei” é teologicamente significativo, pois a “lei de Cristo” se refere a tudo que foi comunicado à Igreja por Cristo. As vidas monástica e ascética são precisamente tentativas de cumprir a “lei de Cristo.” O pensamento conclusivo de São Paulo em Gálatas é: “paz e misericórdia para todos que andarem conforme esta regra.” A “nova criação” sobre a qual São Paulo fala é tanto uma realidade redentora já realizada, quanto, para nós como indivíduos com liberdade espiritual, a “nova criação” é uma realidade que precisa ser “formada,” uma realidade que só pode vir através de um processo, quando a realidade subjetiva de cada pessoa é “formada” na realidade objetiva da “nova criação” lavrada por Nosso Senhor Jesus Cristo.

Efésios.

Em Efésios 1:13-14 São Paulo usa linguagem extremamente interessante em relação a nossa “salvação” em Cristo “em Quem nos cremos e fomos selados com o Espírito Santo da promessa. O Qual é o penhor da nossa herança, para redenção da possessão de Deus.” O significado aqui está claro: o selo do Espírito Santo é o “depósito” para uma herança da qual nós tomamos posse quando nós a adquirimos. É um texto dinâmico. Que a possessão da tal herança requer que andemos em “boas obras” fica claro em Efésios 2:10: “Porque somos feitura Sua, criados em Cristo Jesus para as boas obras, as quais Deus preparou para que andássemos nelas.” Em Efésios 6:11 São Paulo de novo usa a imagem de luta e de se revestir de “toda armadura de Deus.” O “andar” é evocado de novo em 5:8 e 5:15. “Andai como filhos da luz” “Vede prudentemente como andais.” Em 5:9 ele escreve que “Porque o fruto do Espírito está em toda a bondade, e justiça e verdade.” É o “andar na luz” que produz o “fruto de toda a bondade, e justiça e verdade.” E isto é descrito como “aprovando o que é agradável ao Senhor.”
            Em Efésios 5:14 São Paulo cita o que provavelmente era um hino da Igreja inicial, um texto que tem um toque de motivo monástico nele. “Desperta, tu que dormes.” E para que propósito deve-se levantar? Em 5:1 ele comanda “Para ser imitador de Deus.” Em 4:23-24 São Paulo escreve que nós devemos “nos renovar no espírito do nosso sentido.” “E nos revestir do novo homem.” Ele nos roga em 4:1 “andeis como é digno da vocação com que fostes chamados.” Em 4:15 ele nos exorta a que “cresçamos em tudo Naquele que é a cabeça, Cristo.” Em 6:18 Paulo enfatiza a importância da oração. “Orando em todo tempo com toda a oração e súplica...” Todos estes são aspectos das vidas monásticas e ascéticas.

Filipenses.

A Epístola aos Filipenses contém muitas expressões que se relacionam diretamente com uma vida espiritual ativa. Em 1:25 ele fala de “proveito vosso e gozo da fé.” Em 1:27 ele fala de “portarmo-nos dignamente conforme o Evangelho de Cristo.” “Estejais num mesmo espírito, combatendo juntamente com o mesmo ânimo pela fé do Evangelho.” Aqui está o “combatendo” tão detestado por Nygren.
            Para São Paulo nós somos requeridos não somente a acreditar, mas também a sofrer. Em Filipenses 1:29 ele escreve: “ou monon to eis auton pisteuein alla kai to hyper autou paschein.” “Porque a vós foi concedido, em relação a Cristo, não somente crer Nele, como também padecer por Ele.” E em 1:30 ele se refere a isto como a um “combate.” Em 2:16 ele fala da possibilidade de “correr e trabalhar em vão.” Em 3:8 São Paulo fala de “ganhar a Cristo” e no versículo seguinte mostra que isso vem da “justiça que vem de Deus pela fé” e não da “justiça que vem da lei.” Filipenses 3:11-16 é um dos textos mais interessantes. “Para ver se de alguma maneira posso chegar à ressurreição dos mortos. Não que já a tenha alcançado, ou que seja perfeito; mas prossigo para alcançar aquilo para o que fui também preso por Cristo Jesus. Irmãos, quanto a mim não julgo que o haja alcançado; mas uma coisa faço, e é que, esquecendo-me das coisas que atrás ficam, e avançando para as que estão diante de mim, prossigo para o alvo, pelo premio da soberana vocação de Deus em Cristo Jesus. Pelo que todos quantos já somos perfeitos sintamos isto mesmo; e, se sentis alguma coisa doutra maneira, também Deus vo-lo revelará. Mas, naquilo a que já chegamos, andemos segundo a mesma regra, e sintamos o mesmo.” Aqui São Paulo fala tanto de “alcançar Cristo” quanto de “ser preso por Cristo.” A atividade sinérgica é óbvia e realista. Toda linguagem da passagem indica e sublinha a atividade de Deus e a atividade do homem, da realidade objetiva de uma redenção completada e do processo do homem de “alcançar” de “ir para frente” para o objetivo definitivo, um objetivo inatingível se o homem não se tornar espiritualmente ativo. As estruturas verbais gregas de “alcançar” e “ser preso” não são sem significado.
            Em Filipenses 4:8-9 São Paulo fala universalmente como ele faz em Romanos 1. “Tudo o que é verdadeiro, tudo que é honesto, tudo o que é justo, tudo o que é puro, tudo o que é amável, tudo que é de boa fama, se há alguma virtude, e se há algum louvor, nisso pensai.” Estas qualidades — a verdade, a justiça, a pureza, a amabilidade — não são qualidades que foram revolucionadas pela nova criação lavrada pela Encarnação do Deus-Homem, elas não vieram para a existência nem foram revolucionadas pelo pensamento Cristão. Ao contrário, elas estão dentro da própria textura da natureza e existência humana, coisas que toda consciência conhece espontaneamente. O que o Cristianismo fez, no entanto, foi abrir um novo caminho para a humanidade participar na verdade, na justiça, na pureza por um novo caminho ou com um novo poder através de Cristo. Elas agora não existem mais como ideais, como o absoluto, mas estão existencial e ontologicamente acessíveis à natureza humana através da redenção. São Paulo aqui fala uma linguagem quase Platônica, e no entanto, ainda inteiramente Cristã.

Colossenses.

Na Epístola de São Paulo aos Colossenses 1:22-23 e 29 o realismo da sinergia é pintado. “No corpo de Sua carne, pela morte, para perante Ele vos apresentar santos, e irrepreensíveis, e inculpáveis, se na verdade, permanecerdes fundados e firmes na fé, e não vos moverdes da esperança do Evangelho que tendes ouvido.”
            A reconciliação objetiva agora existe mas para dela participar deve-se ser achado santo, irrepreensível e inculpável, e tudo isso é contingente ao significativo “se” — “se, na verdade, permanecerdes na fé.” Nos versículos 28 e 29 nós encontramos as ideias de “perfeição,” “trabalho” e “combate.” “Para que apresentemos todo o homem perfeito em Jesus Cristo. E para isto também trabalho, combatendo segundo a Sua eficácia, que obra em mim poderosamente.” Colossenses 1:10 expressa a mesma ideia de “dignidade,” de “agradar” a Deus, de “frutificar em toda boa obra,” e de “crescimento no conhecimento de Deus.” Mas o verdadeiro poder vem do poder da glória de Deus. Em 1:11 “Corroborados em toda a fortaleza, segundo a força da Sua glória.” Colossenses 2:6-7 expressa também as duas vontades e atividades espirituais no processo de redenção. “Como, pois, recebestes o Senhor Jesus Cristo, assim também andai Nele, arraigados e sobre-edificados Nele, e confirmados na fé, assim como fostes ensinados.”
            A profundidade da ideia de sinergia é encontrada não só em co-morrer e co-sofrer com Cristo, mas também na co-ressurreição com Ele. Em Colossenses 3:1 São Paulo escreve: “Portanto, se já ressuscitastes com Cristo, buscai as coisas que são de cima.” São Paulo continua a usar muitas exortações imperativas no capítulo 3. “Mortificai pois os vossos membros que estão sobre a terra: prostituição, impureza, apetite desordenado, vil concupiscência, e a avareza, que é idolatria” (5). “Mas agora despojai-vos de tudo...” (8). E então o comando (4:2) para continuar a orar e em vigília.

I e II Tessalonicenses.

Em I Tessalonicenses São Paulo continua este segundo aspecto do processo redentor se referindo às “obras de fé” (1:3), expressando preocupação com o possível “trabalho inútil” (3:5), exortando “Se estais firmes no Senhor” (3:8), exortando que “a couraça da fé e do amor seja vestida” (5:8), e comandando para examinar tudo, para reter o bem, e se abster de toda a aparência do mal. (5:21-22). Em 3:10 São Paulo escreve: “Orando abundantemente dia e noite ... e supramos o que falta à vossa fé.” Porque a necessidade de suprir o que falta à fé, se fé “sozinha” é o único critério de salvação, como é afirmado por certas escola de teologia enraizadas na tradição da Reforma? Em 4:3-4 São Paulo escreve interessantemente. “Porque esta é a vontade de Deus, a vossa santificação ... que cada um de vós saiba possuir o seu vaso em santificação e honra.” O objetivo aqui da vida espiritual em Cristo é santificação e o texto interessante é “saber como possuir” este “vaso.” Tal linguagem expressa o dinamismo de um processo sinérgico de redenção. Em 5:9 São Paulo usa a expressão “aquisição da salvação.” Em II Tessalonicenses 2:14 São Paulo usa a expressão “para alcançardes a glória de nosso Senhor Jesus Cristo.” Em II Tessalonicenses 1:11 São Paulo ora para que nós sejamos considerados dignos do chamado e que nós cumpramos todo “o desejo da Sua bondade, e a obra da fé com poder.”

I e II Timóteo.

Em I Timóteo 1:5-6 nós lemos: “Ora o fim do mandamento é o amor de um coração puro, e de uma boa consciência, e de uma fé não fingida. Do que desviando-se alguns, se entregaram a vãs contendas.” Em 1:18-19 a imagem de luta é usada de novo. “Este mandamento te dou, meu filho Timóteo, que, milites por elas boa milícia, conservando a fé, e a boa consciência, rejeitando a qual alguns fizeram naufrágio na fé.”
            I Timóteo 2:1-4 tem a mesma intensidade de atividade espiritual que é encontrada na literatura monástica e ascética: “Admoesto-te pois, antes de tudo, que se façam deprecações, orações, e ações de graças por todos os homens. Pelos reis, e por todos os que estão em eminência, para que tenhamos uma vida quieta e sossegada, em toda a piedade e honestidade. Porque isto é bom e agradável diante de Deus nosso Salvador, Que quer que todos os homens se salvem, e venham ao conhecimento da verdade.” A mesma ênfase continua em 4:7-10 especialmente as expressões “exercita-te a ti mesmo” e “porque para isto trabalhamos e lutamos.” I Timóteo 6:12 de novo enfatiza a “militância,” e o “tomar posse” daquilo que foi objetivamente realizado na redenção. “Milita a boa milícia da fé, toma posse da vida eterna.” E no verso precedente a este é comandado “a seguir a justiça, a piedade, a fé, o amor, a paciência, a mansidão.” Que significado espiritual pode ter “seguir a justiça” a menos que isto indique que, apesar da “justiça de Deus” estar estabelecida em Cristo Jesus, nós ainda temos que lutar ativamente em luta espiritual para “tomar posse” desta justiça. Já em I Timóteo 5:9 fica claro que “viúvas” de uma certa idade tinham um lugar especial dentro da vida espiritual da Igreja. “Que a viúva seja inscrita.” Inscrita em que? É obviamente para uma atividade especial dentro da vida espiritual da Igreja que as viúvas eram inscritas, já uma forma especial de atividade espiritual na vida mais inicial da Igreja.
            Em II Timóteo 2:6 tanto a realidade objetiva do dom da redenção, quanto o trabalho individual subjetivo necessário para “tomar posse” dessa obra redentora ficam claramente aparentes. “Eu te lembro que despertes o dom de Deus que existe em ti.” A sinergia da redenção é mencionada em 2:11-12 com o muito significativo “se.” “Que, se morrermos com Ele, também com Ele viveremos; se sofrermos, também com Ele reinaremos.” Em 2:21 a santificação é contingente à autopurificação: “De sorte, que se alguém se purificar ... será vaso para honra, santificado.” Em 2:22 de novo somos exortados a “fugir dos desejos da mocidade” e seguir a “justiça, fé, amor e a paz” e o “chamado do Senhor” deve ser feito “com um coração puro.” Em 4:7 o caminho da salvação é, de novo, apresentado como um combate. “Combati o bom combate, acabei a carreira, guardei a fé.”

Hebreus.

A Epístola aos Hebreus é rica em seu pensamento sobre ambos os aspectos da redenção — na obra de Deus, e no combate espiritual por parte do homem. Em 3:14 a linguagem é espantosa. “Nos tornamos participantes de Cristo, se retivermos firmemente o principio de nossa confiança até o fim.” Em 4:1 a ideia é similar. “Temamos, pois que, porventura, deixada a promessa de entrar no seu repouso, pareça que algum de vós fica para trás.” A ideia de “entrar nesse repouso” continua em 4:11. “Procuremos pois entrar naquele repouso, para que ninguém caia no mesmo exemplo de desobediência.” Em 6:1 o “inicio” do processo é mencionado, acompanhado pela exortação: “prossigamos até a perfeição.” Em 6:11 deve-se mostrar cuidado “até o fim, para completa certeza da esperança.” As mesmas exortações de se “fazer alguma coisa” são encontradas ao longo de todo Hebreus. Em 10:22-23 está: “Cheguemo-nos com verdadeiro coração” e “Retenhamos firmes a confissão da nossa esperança.”
            Em 11:1 é proferida uma definição de fé: “Ora, a fé é o firme fundamento das coisas que se esperam, e a prova das que não se veem.” Essa definição de fé é com frequência dispensada muito rapidamente. É uma ideia profunda, especialmente quando considerada na sua estrutura grega original. Fé é a “base,” a “realidade” sobre a qual a “esperança” da fé Cristã é construída. E em sua realidade ela contém a própria prova, a evidência do reino do céu. O capítulo onze inteiro revela que a fé foi ativa sob a “velha lei,” apesar da fé de e em Cristo ter um significado ontológico mais profundo exatamente porque é a base de uma nova realidade não disponível sob a “velha lei.” Depois de uma longa exposição de exemplos de “fé’ sob a “velha lei,” a Epístola aos Hebreus em 12:1 se engaja em uma exortação que se refere a própria atividade espiritual da nova fé. “Deixemos todo o embaraço, e o pecado que tão de perto nos rodeia, e corramos com paciência a carreira que nos está proposta.” A realidade da “correção” e “disciplina” é enfatizada em Hebreus, especialmente em 12:7-8: “Se suportais a correção.” E que se pode “cair da graça de Deus” está claro em 12:15.
  

I e II Pedro.

Em I Pedro 1:9 não é o inicio da fé ou fé em geral que resulta em salvação, mas é precisamente o “fim da fé” que “obtém” salvação. Purificação e obediência são temas dominantes em I Pedro. “Purificando as vossas almas na obediência à verdade, para amor fraternal, não fingido; amai-vos uns aos outros com um coração puro” (1:22). O processo de crescimento na vida espiritual é enfatizado em 2:2: “... para que por ele vades crescendo.” A “guerra” entre concupiscências carnais e a alma é mencionada em 2:11 “Amados, peço-vos como a peregrinos e forasteiros, que vos abstenhais das concupiscências carnais que combatem contra a alma.” Em II Pedro 1:4 é expresso um pensamento teológico profundo. As promessas que Deus fez são grandes e preciosas; corrupção está no mundo por causa da concupiscência; e o homem pode não só escapar dessa corrupção, mas também se tornar participante na natureza Divina, uma ideia que se desenvolve no inicio do Cristianismo, e no pensamento teológico da Igreja Ortodoxa Oriental, uma ideia que lança as bases para a doutrina da theosis, da divinização. “Pelas quais Ele nos tem dado grandíssimas e preciosas promessas, para que por elas fiqueis participantes da natureza Divina, havendo escapado da corrupção, que pela concupiscência há no mundo.” Precisamente por causa disso nós somos instruídos nos versículos seguintes a suplementar nossa fé, e então, o dinâmico processo de crescimento espiritual é apresentado. “E vós também, pondo nisto mesmo toda diligência, acrescentai à vossa fé a virtude, e à virtude a ciência, e à ciência temperança, e à temperança paciência, e à paciência piedade, e à piedade amor fraternal, e ao amor fraternal amor.”
Em II Pedro 1:10 há menção a uma “vocação” e eleição.” E, no entanto, no mesmo texto se é exortado a ser “cada vez mais firme” para exatamente fazer essa “vocação e eleição” mais firmes. E em 2:20-22 o desvio do “caminho da justiça” não só é possível, como de fato ocorre, e é pior esse estado do que aquele de quem não tivesse conhecido o “caminho da justiça” de todo. E o texto fala daqueles que têm “um conhecimento de Deus.” “Porquanto se, depois de terem escapado das corrupções do mundo, pelo conhecimento do Senhor e Salvador Jesus Cristo, forem outra vez envolvidos nelas e vencidos, tornou-se-lhes o último estado pior do que o primeiro. Porque melhor lhes fora não conhecerem o caminho da justiça, do que conhecendo-o, desviarem-se do santo mandamento que lhes fora dado.”
  

As Epístolas de São João.

Nas três epístolas de São João nós encontramos a mesma linguagem, a mesma realidade dos dois aspectos da redenção. Os mesmos “ses” estão nelas, a mesma ênfase de purificação (ver I Jo 3:3), a mesma linguagem de “agradar a Deus,” e a mesma ênfase em “manter os comandos” e “não pecar.” Há uma ligação orgânica entre amar a Deus e manter os Seus comandos — o conjunto completo dos comandos de Cristo.

A Epístola de São Tiago e a Avaliação de Lutero.

A avaliação de Lutero da Epístola de São Tiago é bem conhecida. De fato, Lutero posicionou não só Tiago no fim da Bíblia Alemã, mas também Hebreus, Judas e Apocalipse. E seu critério é que nessa peças faltava pureza evangélica. Ele não foi o primeiro a fazer isso. Seu colega em Wittenberg, para quem mais tarde Lutero se virou, Carlstadt, havia distinguido entre s livros do Novo Testamento — e do Velho Testamento — antes que Lutero realizasse suas próprias ações. Ainda em 1520 Carlstadt dividiu toda Escritura em três categorias: libri summa dignitatis, nos quais Carlstadt incluiu o Pentateuco assim como os Evangelhos; libri segundae dignitatis, nos quais ele incluiu os profetas e quinze epístolas; e libri tertiae dignitatis.
            Lutero rejeitou a Epístola de São Tiago teologicamente, mas por necessidade a manteve na Bíblia Alemã, ainda que como um tipo de apêndice. O fim do Prefácio de Lutero para sua edição da Bíblia Alemã, que foi omitido em edições posteriores, fala no alemão de sua época; .”.. por essa razão a Epístola de São Tiago é uma epístola totalmente desimportante, pois ela não tem mérito evangélico.” Lutero a rejeitou teologicamente “porque ela dá mérito para obras em flagrante contradição com Paulo e todo resto da Escritura ... porque, enquanto empenhada em ensinar pessoas Cristãs, ela não menciona nenhuma vez a paixão, a ressurreição, o Espírito de Cristo; ela menciona o nome de Cristo duas vezes, mas não ensina nada sobre Ele; ele chama a lei de lei da liberdade, enquanto Paulo a chama de lei de escravidão, de ira, de morte e de pecado.”
            Lutero até mesmo incluiu a palavra “sozinha” — allein — em Romanos 3:28 depois de “pela fé” exatamente para contradizer as palavras de Tiago em 2:24: “Vedes então que o homem é justificado pelas obras, e não somente pela fé.” Além disso, e mais importante, é que Lutero foi muito agressivo e arrogante em sua resposta às críticas de que lê tinha acrescentado “sozinho” algo no texto Bíblico: “Se teu papista faz muito reboliço inútil sobre a palavra sozinha, allein, diga a ele de uma vez: “O Doutor Martinho Lutero a manterá assim, e diz: papistas e burros são uma só coisa; sic volo, sic jubeo, sit pro ratione voluntas. Pois nós não queremos ser alunos e seguidores dos Papistas, mas sim seus mestres e juízes.” Lutero continua de maneira zombeteira tentando imitar São Paulo em sua resposta a seus oponentes. “São eles doutores? Também sou. São instruídos? Também sou. São pregadores? Também sou. São Teólogos? Também sou. São filósofos? Também sou. São escritores de livros? Também sou. E ainda posso alardear: eu posso expor Salmos e Profetas, o que eles não podem. Eu posso traduzir, o que eles não podem... Portanto, a palavra allein permanecerá em meu Novo Testamento, e apesar de todos papa-burros ficarem furiosos e doidos, eles não tirarão a palavra.” Em algumas edições alemãs a palavra allein foi impressa em tipos maiores! Alguns críticos da tradução de Lutero o acusaram de traduzir deliberadamente sem exatidão para apoiar sua visão teológica. Já em 1523 o Dr. Emser, um oponente de Lutero, afirmou que a tradução de Lutero “continha mil erros gramaticais e mil e quatrocentos erros heréticos.” Isso é exagerado, mas permanece o fato de que existem numerosos erros na tradução de Lutero.
            Na verdade, toda Reforma em sua atitude para com o Novo Testamento é diretamente oposta ao pensamento sobre esse assunto do Bem-Aventurado Agostinho, que era estimado em muitos aspectos pelos teólogos da Reforma e, de onde eles tiraram a base para algumas visões teológicas, especialmente predestinação, pecado original e graça irresistível para Lutero e Calvino. Nesse assunto, como em alguns outros, não há base comum entre Lutero e Calvino de um lado e Bem-Aventurado Agostinho do outro. Este escreveu: “Eu não teria acreditado no Evangelho, se não tivesse sido movido pela autoridade da Igreja.” Deve ser mencionado que Calvino não fez objeção à Epístola de São Tiago.
            Lutero esteve tão preso na abstração de uma justiça passiva, tão enfurecido por sua experiência como monge praticando aquilo ao qual ele se referiria como “justiça de obras,” tão envolvido em tentar criar um significado específico para uma linha de pensamento de São Paulo, que ele perdeu a própria base de onde veio o pensamento teológico de São Tiago — que é a iniciativa e vontade de Deus. A crítica de Lutero de que São Tiago não menciona a paixão, a ressurreição e o Espírito de Cristo é imbecil, pois seus leitores conheciam o depósito apostólico — não havia necessidade de mencionar a base e essência da fé viva que eram conhecidas por aqueles que liam as epístolas. Tal crítica por Lutero revela a enorme falta de senso pela vida histórica da Igreja inicial, pois a Igreja tinha existência e foi da Igreja e para a Igreja que as epístolas foram escritas. Historicamente a Igreja existe desde antes que qualquer texto da “Nova Aliança” tivesse sido escrito. A Igreja existiu na tradição oral recebida dos apóstolos, como está claramente revelado nas páginas do próprio Novo Testamento.
            A própria base da visão teológica de São Tiago é a vontade de Deus. Em 1:17-18 São Tiago escreve: “Toda a boa dádiva e todo o dom perfeito vem do alto, descendo do Pai das luzes, em Quem não mudança nem sombra de variação. Segundo a Sua vontade, Ele nos gerou pela palavra da verdade, para que fôssemos como primícias de Suas criaturas.” Em 4:15 São Tiago escreve: “Em lugar do que devíeis dizer: se o Senhor quiser e se vivermos, faremos isso ou aquilo.” Um texto teologicamente fraco na Epístola de São Tiago está em 4:8: “Chegai-vos a Deus, e Ele Se chegará a vós.” Tomado de per si tem um toque Pelagiano. E na literatura monástica e ascética se encontra com frequência tais expressão. Mas o significado tanto na epístola quanto na literatura monástica e ascética deve ser compreendido dentro do contexto total. Uma vez que a sinergia do processo redentor tem lugar no coração do homem, então a reciprocidade existencial da graça e resposta é tão dinâmica que se pode, como se fosse, usar tais expressões, precisamente porque está assumido que Deus iniciou e que a graça está sempre trabalhando no coração do homem, em toda profundidade do interior do homem assim como na vida exterior. O texto na Epístola de São Tiago deve ser entendido no contexto de 1:18 e 4:15. Além disso, tem que ser notado que este texto é precedido por “Sujeitai-vos pois a Deus....” Estando “sujeito a Deus,” uma relação já está posta, uma relação que pressupõe a iniciativa de Deus e a resposta do homem.
            A Epístola de São Tiago contém muitas expressões que serão usadas na vida monástica e ascética. Tentação (1:14), paixões (4:1), purificação, limpeza, auto-humilhação (4), e “lamentar e chorar pelas misérias” (4:9). As palavras esfoladoras contra os ricos (5:1-6) fundamentam o voto de pobreza monástico.

A Vida da Igreja Inicial.

A vida da Igreja inicial como descrita nos Atos dos Apóstolos é tão clara que não é necessária análise ou apresentação de texto para demonstrar que no essencial exista uma forma de espiritualidade similar ao do Cristianismo monástico e ascético. Deve-se também fazer menção à vida de São João Batista: “É em base sólida que um estudante das origens monásticas como Dom Germain Morin sustenta seu aparente paradoxo: não foi tanto a vida monástica que foi uma novidade no final do século três e inicio do século quatro, mas sim a vida de adaptação ao mundo conduzida pela massa dos Cristãos ao tempo em que a perseguição cessou. Os monges, na verdade, não fizeram nada, a não ser preservar intacta, no meio de circunstâncias alteradas, o ideal da vida Cristã dos primeiros dias... E há uma outra cadeia contínua, dos apóstolos para os solitários e destes para os cenobitas, cujo ideal, o menos comum que possa parecer, se espalhou tão rapidamente dos desertos egípcios no final do século três. Essa cadeia é formada por homens e mulheres que viveram em continência, ascetas e virgens, que nunca cessaram de serem mantidos em honra na Igreja antiga.”


***     ***     ***


De Collected Works of Georges Florovsky, Vol. X, Byzantine Ascetic and Spiritual Fathers (Vaduz, Europa: Buchervertriebsanstalt, 1987), pp. 17-59. Esse mesmo capítulo está duplicado no Vol. XIII pgs. 102-103. Padre Georges colocou o texto grego do Novo Testamento depois de quase todas as passagens citadas. Para o propósito de disseminação pela Internet eu deletei as passagens gregas. Esse capítulo tem direito de cópia, apesar do livro estar fora de impressão.

* Para o tratamento por uma fonte primária do conceito de que a graça de Deus faz um justo ver Sobre a Encarnação do Verbo de Deus por Santo Atanásio o Grande. Aqui está um importante excerto sobre este conceito:
            Pois não eram coisas sem ser que necessitavam salvação, pois para isso um simples comando seria suficiente, mas o homem, já com existência, estava indo para a corrupção e para a ruína. Era então natural e justo que o Verbo usasse um instrumento humano e Se revelasse por toda parte. Em segundo lugar, vós deveis saber também disso, que a corrupção que foi posta não era exterior ao corpo, mas se tornou ligada a ele; e foi requerido que, ao invés de corrupção, a vida se ajustasse a ele; para que, assim como a morte fora engendrada no corpo, também a vida pudesse ser engendrada nele. E como a morte era externa ao corpo, seria apropriado para a vida também ser engendrada externamente a ele. Mas se a morte estava inserida muito próxima do corpo e o estava dirigindo como se estivesse unida com ele, era necessário que a vida também fosse inserida muito próxima do corpo, para que o corpo, assumindo vida ao invés de morte, afastasse a corrupção. Além disso, ainda que supuséssemos que o Verbo tivesse vindo fora do corpo, e não nele, a morte teria de fato sido derrotada por Ele, em perfeita harmonia com a natureza, porque a morte não tem poder contra a Vida; mas a corrupção ligada ao corpo teria permanecido nele, sem nenhuma diminuição. Por essa causa, o Salvador razoavelmente Se colocou num corpo, para que aquele corpo, se tornando muito próximo da Vida, não mais, como mortal, habitaria na morte, mas tendo posto a imortalidade em si, daí para frente levantaria de novo e permaneceria imortal. Pois como ele tinha posto a corrupção, ele não poderia levantar de novo a menos que pusesse a vida. E, igualmente, a morte, por sua natureza não poderia aparecer, a não ser no corpo.
            Por isso Ele pôs um corpo, para que pudesse achar a morte no corpo, e apagá-la. Pois como poderia o Senhor ter provado, de todo, ser a Vida, se Ele não tivesse vivificado o que era mortal? Pois, assim como a palha é naturalmente destrutível pelo fogo, supondo que um homem a mantenha longe do fogo, ainda que não queime, ainda assim a palha permanece, por tudo isso, como simples palha, temerosa da ameaça do fogo — pois o fogo tem a propriedade natural de consumi-la; enquanto se o homem fechar a palha dentro de uma quantidade de asbestos, a substância que se diz ser um antídoto para o fogo, a palha não mais temerá o fogo, estando segura por seu envolvimento por um material incombustível; dessa mesma maneira pode-se dizer, em relação ao corpo e à morte, que se a morte fosse mantida fora do corpo por um simples comando de Sua parte, ele não seria menos mortal e corruptível, segundo a natureza dos corpos; mas, para que isso não fosse assim, o corpo vestiu o incorporal Verbo de Deus, e assim não mais temerá morte ou corrupção, pois ele tem a vida como vestimenta e a corrupção está abolida nele (capítulo 44).





Nenhum comentário:

Postar um comentário