Reflexões sobre a Crítica
da Teologia da Reforma
Tradução:
Rev. Pedro Oliveira Junior
Conteúdo:
Se
o ideal monástico é a união com Deus através da oração, através da humildade,
através da obediência, através de constante reconhecimento dos próprios pecados,
voluntários ou involuntários, através da renuncia aos valores desse mundo, através
de pobreza, através de castidade, através do amor pela humanidade e amor por
Deus, então é esse um ideal Cristão? Para alguns o simples levantar dessa
questão para parecer estranha e estrangeira. Mas a história do Cristianismo,
especialmente a nova atitude teológica obtida como resultado da Reforma, força
tal questão e exige uma resposta séria. Se o ideal monástico é obter uma
criativa liberdade espiritual, e se o ideal monástico constata que essa
liberdade só é obtenível em Deus o Pai, Deus o Filho e Deus o Espírito Santo, e
se o ideal monástico afirma que se tornar um escravo de Deus é ontológica e
existencialmente o caminho para tornar-se livre, o caminho no qual a humanidade
se torna completamente humana precisamente porque a existência criada é
contingente a Deus, é em si ladeado pelos dois lados por não-existência, então
tal ideal é Cristão? É um ideal Bíblico — do Novo Testamento? Ou é esse ideal monástico,
como seus oponentes afirmam, uma distorção do autêntico Cristianismo; uma
escravidão a um mecânico “monasticismo” que “opera justiça”?
Quando
nosso Senhor estava para começar o Seu ministério, ele foi para o deserto. Nosso Senhor tinha opções, mas
selecionou — ou melhor, foi “impelido pelo Espírito” para o deserto. Obviamente
não é uma ação sem significado, não uma seleção do tipo de lugar sem
significado. E lá — no deserto — nosso Senhor se engaja em combate espiritual,
pois “Ele jejuou quarenta dias e quarenta noites.” O Evangelho de São Marcos acrescenta que nosso Senhor “viveu entre
feras.” Nosso Senhor, o Deus-Homem, foi verdadeiramente Deus e verdadeiramente
homem. Exclusivo do trabalho redentor de nosso Senhor, único só para nosso
Senhor, Ele nos chama para O seguir.
“Seguir” nosso Senhor não é excludente; não é selecionar certos aspectos
psicologicamente agradáveis da vida e ensinamentos de nosso Senhor para seguir.
Ao contrário é todo abarcante. Temos que seguir nosso Senhor de todas as
maneiras possíveis. “Ir para o deserto” é “seguir” nosso Senhor. É interessante
que nosso Senhor retorna ao deserto após a morte de São João Batista. Há uma
razão óbvia para isso. “e ouvindo (sobre a morte de São João Batista) Jesus
saiu dali num barco para um lugar deserto privadamente.” Quando Santo Antonio
vai para o deserto, ele está “seguindo” o exemplo de nosso Senhor — na verdade,
ele está “seguindo” nosso Senhor. Isso de modo algum diminui o trabalho
salvífico, único, de nosso Senhor, isso não faz de modo algum de nosso Senhor
Deus, o Deus-Homem, um mero exemplo. Mas em acréscimo ao Seu trabalho redentor,
que só poderia ser realizado por nosso Senhor, nosso Senhor ensinou e mostrou
exemplos. E ao “seguir” nosso Senhor no deserto, Santo Antonio estava entrando
num terreno já marcado e estampado por nosso Senhor como um lugar específico
para guerra espiritual. Há tanto especificidade quanto “tipo” no “deserto.” Nas
regiões geográficas onde não há desertos, há lugares que são similares ou que
se aproximam do tipo de lugar simbolizado pelo “deserto.”
É o tipo de lugar que deixa o coração humano aliviado,
isolado. É o tipo de lugar que põe o coração humano num estado de estar só, um
estado no qual meditar, orar, jejuar, refletir sobre a própria existência e no
relacionamento com a realidade definitiva—Deus. E mais, é um local onde a
realidade espiritual é intensificada, um lugar onde a vida espiritual pode ser
intensificada, e simultaneamente onde as forças opositoras da vida espiritual
podem se tornar mais dominantes. É um terreno de batalha, mas espiritual. E foi
nosso Senhor, e não Santo Antonio que a colocou antes. Nosso Senhor diz que “o
que foi semeado entre espinhos é o que ouve a palavra, mas os cuidados deste
mundo, e a sedução das riquezas, sufocam a palavra, e fica infrutífera.” O
deserto, ou um lugar similar, precisamente corta os cuidados e ansiedades com
este mundo, e a sedução das riquezas terrenas. Ele corta precisamente com essa
“mundanidade” e precisamente por isso ele contém dentro de si uma poderosa
razão espiritual para existir dentro dos caminhos da Igreja. Não como o único
caminho, não como o caminho para todos, mas como um caminho completamente
autêntico da vida Cristã.
No Evangelho de São Mateus (5:16) é nosso
Senhor que utiliza a terminologia de “boas obras.” “Assim resplandeça a vossa
luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras e glorifiquem a
vosso Pai, que está nos céus.” Contextualmente essas “boas obras” são definidas
no texto precedente das “Beatitudes.” “Bem-aventurados os mansos, porque eles
herdarão a terra.” “Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque
eles serão fartos.” “Bem-aventurados os limpos de coração, porque eles verão a
Deus.” Não é parte integral do objetivo monástico se tornar manso, ter fome e
sede de justiça, e se tornar limpo no coração? Esse, por certo, deve ser o
objetivo de todos os Cristãos, mas o monasticismo, que faz disso uma parte integral
da sua vida ascética, não pode de jeito nenhum ser excluído. As Beatitudes não
são mais do que simples expressão retórica? Não são as Beatitudes uma parte dos
mandamentos de nosso Senhor? No Evangelho
de São Mateus (5:19) nosso Senhor expressa um profundo e significativo
pensamento — ou melhor, um aviso. “Qualquer pois que violar um destes mais
pequenos mandamentos, e assim ensinar aos homens, será chamado o menor no reino
dos céus;” E é nesse contexto que nosso Senhor continua a aprofundar o
significado da velha lei com a nova, um significado espiritual, uma penetrante interiorização
da “lei.” Ele não anula ou abroga a lei, mas sim a estende para o seu limite
mais lógico e ontológico, pois Ele leva o significado espiritual da lei para o
mais profundo da existência interna do homem.
“Vos ouvistes o que foi dito para aqueles no passado ...
mas eu vos digo.” Agora, com o aprofundamento da dimensão espiritual da lei, o
antigo permanece, é a base, mas sua realidade espiritual é apontada para sua
fonte. “Não matarás” se torna inextricavelmente ligado a “ira.” “Mas Eu digo
que todo aquele que ficar irado com seu irmão será sujeito a julgamento.” Não
mais é o ato externo o único ponto focal. Mas a fonte, o intento, o motivo são
agora considerados como o solo do qual brota o ato externo. A humanidade deve
agora guardar, proteger, e purificar a emoção ou atitude interna de “ira” e,
fazendo assim, a considerar na mesma luz que o ato externo de matar ou
assassinar. Nosso Senhor atingiu o mais profundo do coração humano e apontou
para a fonte do ato externo. “Não cometerás adultério. Mas eu digo que qualquer
um que olhar para uma mulher libidinosamente, já cometeu adultério com ela em
seu coração. De uma perspectiva espiritual, uma pessoa que não age externamente,
mas cobiça internamente é igualmente responsável pela realidade do ‘adultério’”
. “Vós ouvistes o que foi dito, ‘amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo.’
Mas Eu vos digo: amai vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem para que
possais vos tornardes filhos de vosso Pai no céu.”
A Inadequação da Crítica de Anders Nygren.
A ideia Cristã de amor é, de fato, alguma
coisa nova. Mas não é alguma coisa tão radicalmente impar que a alma humana não
possa compreendê-la. Não é uma “transavaliação de todos os valores antigos,”
como Anders Nygren afirmou no seu longo estudo Ágape e Eros. Apesar de haver certos aspectos da verdade em algumas
das afirmações de Nygren, sua premissa em si está incorreta. Nygren lê no Novo
Testamento e na Igreja Primitiva a posição básica de Lutero ao invés de tratar
do pensamento inicial Cristão de dentro do seu próprio meio. Tal aproximação
produz bem poucos frutos definitivos e, com frequência, como é o caso de sua
posição em Ágape e Eros, distorce as
fontes originais com pressuposições que entram na história do pensamento
Cristão 1500 anos depois de nosso Senhor ter alterado a própria natureza da
humanidade ao entrar na existência humana como Deus e Homem. Há muito em Lutero
que é interessante, perceptivo, e verdadeiro. Porém, há também muito que não
fala a mesma linguagem do Cristianismo do inicio. E aí se encontra a grande
divisão no diálogo ecumênico. Pois para o diálogo ecumênico dar fruto, as
profundas controvérsias que separam as igrejas não podem ser silenciadas. Há
muito em Lutero com que os teólogos Ortodoxos Orientais podem se relacionar. No
entanto, monasticismo é uma área na qual existe profundo desentendimento. O
próprio Lutero, no inicio, não rejeitou o monasticismo. A Reforma de Lutero foi
resultado da sua incompreensão do Novo Testamento, uma incompreensão resultante
de um entendimento que o próprio Lutero chamou de “novo.” Sua posição teológica
já estava formada antes do assunto das indulgências e sua divulgação das Noventa e Cinco Teses. Nygren, fiel à
visão teológica de Lutero, tem uma razão teológica para sua posição em Ágape e Eros.
Nygren
identifica sua interpretação de Ágape com o monoenergético conceito de Deus, um
conceito de Deus que seria correto em si, pois Deus é a fonte de tudo. Mas uma
vez que sejamos confrontados com o mistério da criação, o mistério dessa
“outra” existência, essa existência criada que inclui a humanidade, nós
enfrentamos uma situação totalmente diferente. O significado existencial e
ontológico da existência criada do homem é precisamente que Deus não tinha que
criá-la, e foi um ato livre da Divina liberdade. Mas — e aqui está a grande
dificuldade criada por um Cristianismo não balanceado na doutrina da graça e
liberdade — ao criar livremente o homem Deus quis dar a ele uma liberdade
espiritual interna. De modo algum esta é uma posição Pelagiana ou
Semi-Pelagiana. A equilibrada doutrina sinergética da Igreja Cristã do inicio,
uma doutrina mal compreendida e minada pelo Cristianismo Latino em geral a
partir do Bem-aventurado Agostinho — apesar de sempre ter havido oposição interna
a isso na Igreja Latina — sempre entendeu que Deus inicia, acompanha e completa
tudo no processo de salvação. O que ela sempre rejeitou — tanto espontânea
quanto intelectualmente — é a ideia da graça irresistível, a ideia de que o
homem não tem papel participativo em sua salvação. Nygren identifica qualquer
participação do homem em sua salvação, qualquer movimento da vontade e alma do
homem para Deus, como uma distorção pagã do Ágape,
como Eros. E essa atitude, essa
perspectiva teológica será em essência o ponto determinante para a rejeição do
monasticismo e outras formas de ascetismo e espiritualidade tão familiares para
a Igreja Cristã desde seu inicio.
Se a posição de Nygren no Ágape está correta, então as
palavras de nosso Senhor cotadas acima, não encontrariam base nos corações dos
ouvintes para entendimento. Ales disso, nosso Senhor ao usar a forma verbal de
Ágape — agapate — usa o “velho”
comando como base para dar o novo, a extensão espiritual daquele comando de
ágape, de amor. Se Nygren está correto, o “velho” contexto de ágape teria sido
sem significado, especialmente como a base sobre a qual nosso Senhor constrói
um novo espiritual e ontológico caráter do ágape. O ponto de Nygren é que o
“Comando de Amor” ocorre no Velho Testamento e que é “introduzido nos
Evangelhos, não como algo novo, mas como uma citação do Velho Testamento.” Ele
está tanto correto quanto errado. Correto em que é uma referência tirada do
Velho Testamento, De onde mais nosso Senhor tiraria referências ao se dirigir
ao “seu povo”? Ele está errado quando alega que não é nada mais do que uma
citação do Velho Testamento, precisamente porque nosso Senhor usa as referências
do Velho Testamento como uma base sobre a qual construir. Por isso, a base tem
que ser segura do contrário a construção racharia e o ensinamento seria errôneo.
O próprio Nygren afirma que “o Ágape nunca pode ser ‘auto-evidente.’” Fazendo
tal afirmação, Nygren corta qualquer possibilidade dos ouvintes de nosso Senhor
entender qualquer discurso onde nosso Senhor use o termo “Ágape.” E ainda
Nygren escreve que “o motivo Ágape forma o tema principal de uma série completa
de Parábolas.” Se esse é o caso, então os ouvintes das parábolas não podem
tê-las entendido, pois eles certamente não compreendem Ágape na especificidade
definida por Nygren, e assim as parábolas — de acordo com a lógica interna da
posição de Nygren — não teriam sentido para os contemporâneos de nosso Senhor,
Seus ouvintes.
Ser preenchido com amor de e por Deus é o ideal
monástico.
No Evangelho de São
Mateus (22:34 - 40) nosso Senhor é perguntado qual é o grande mandamento.
“Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de
todo teu pensamento. Este é o primeiro e grande mandamento. E o segundo
semelhante a este, é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Destes dois
mandamentos depende toda lei e os profetas.” O ideal monástico e ascético é
cultivar o amor do coração, da alma e da mente por Deus. O comentário de Anders
Nygren deste texto em seu Ágape e Eros
é característico de sua posição geral. “Foi reconhecido de há muito que a ideia
de Ágape representa uma característica distinta e original do Cristianismo. Mas
em que, precisamente, consistem essas originalidade e distinção? Essa questão
tem sido respondida com frequência com referência ao Mandamento de Amor. O duplo mandamento ‘Amarás o Senhor teu Deus de
todo o teu coração’, e ‘Amarás o teu próximo como a ti mesmo’, tem sido tomado
como o ponto-de-partida natural para a exposição do significado do amor
Cristão. Porém, o fato é que se nós começamos com o mandamento, com Ágape como
algo mandado, nós barramos nosso próprio caminho para o entendimento da ideia
de Ágape ... Se o Mandamento do Amor pode ser dito ser especificamente Cristão,
como sem dúvida pode, a razão tem que ser encontrada, não no mandamento como
tal, mas no significado bem novo que Cristo deu a ele ... se chegar a um entendimento
da ideia Cristã de amor simplesmente por referência ao Mandamento de Amor é portanto,
impossível; tentar isso é se mover em círculo. Nós nunca descobriríamos a
natureza do Ágape, amor no sentido Cristão, se nós não tivéssemos nada para nos
guiar que não fosse o Mandamento do Amor ... Não é o mandamento que explica a ideia
de Ágape, mas uma intuição sobre a concepção Cristã de Ágape que nos capacita a
agarrar o significado Cristão do mandamento. Devemos então procurar outro
ponto-de-partida” (pgs. 61- 63).
Essa é realmente uma posição estranha para quem vem da
tradição da sola Scriptura, pois sua
posição não é de sola Scriptura, mas
precisamente que a Escritura precisa ser interpretada — e aqui a interpretação
vem não da matriz do Cristianismo primitivo, mas de longe, de uma interpretação
que em grande extensão depende de uma interpretação do Cristianismo que chegou
na história do Cristianismo aproximadamente 1500 anos depois do inicio do ensinamento
Cristão, e isto com a assunção de que Nygren está seguindo a posição geral de
Lutero. Em sua análise de certas interpretações de em que consiste o caráter
único do amor Cristão, e em sua rejeição das interpretações do que constitui o
caráter único do amor Cristão Nygren está, em parte, correto. “Este é, de fato,
o defeito básico de todas as interpretações até agora consideradas; elas falham
em reconhecer que o amor Cristão repousa numa base bem definida, positiva,
própria. O que é, então, esta base?” Nygren se aproxima da essência do tema,
mas negligencia o aspecto importante da ontologia humana, uma ontologia humana
criada por Deus. “A resposta a esta questão pode ser encontrada no texto ... ‘Amai
vossos inimigos.’ É verdade que amor pelos inimigos é uma variação de nossos
sentimentos naturais imediatos, e pode por isso parecer mostrar o caráter negativo
mostrado acima; mas se nós considerarmos o motivo que o sublinha nós veremos
que ele é inteiramente positivo. O Cristão é comandado a amar os seus inimigos,
não porque o outro lado ensina a odiá-los, mas porque há uma base e motivo para
tal amor no fato concreto, positivo do amor de Deus pelos homens malignos. ‘Ele
faz o sol brilhar sobre os maus e os bons.’ Eis aí porque nos é dito: ‘Amai
vossos inimigos ... para que possais ser filhos de vosso Pai Que está no céu.’”
O que Nygren escreve aqui é acurado. Mas, ele negligencia
o significado da ontologia humana; isto é, que nós somos comandados a amar
nossos inimigos porque há um valor espiritual dentro da própria estrutura da
natureza humana criada por Deus, mesmo na natureza decaída, e que este valor
espiritual deve ser encontrado em cada um de todos os homens, não importa quão
obscuramente nós o percebamos. Se nós começarmos a amar nossos inimigos, nós
iremos começar a perceber, nas características do inimigo, aspectos que estavam
velados, que estavam obscurecidos pela cegueira de nosso ódio. Nós somos
comandados a amar nossos inimigos, não só porque Deus ‘faz o sol brilhar sobre
os maus e os bons’ mas Deus ama a humanidade porque há um valor na humanidade.
Nygren escreve, (pg. 79), que ‘a sugestão de que o homem é possuidor por
natureza de tal valor inalienável, levanta facilmente o pensamento de que é
neste valor inigualável que o amor de Deus se assenta.’ Talvez seja impreciso
afirmar que Nygren perde o tema central de que este valor no homem é criado por
Deus, dado por Deus. É mais preciso afirmar que Nygren rejeita completamente o
tema, e ele faz isso por sua doutrina teológica de Deus e do homem. De novo,
isto é parte da grande divisão que separa certas igrejas dentro do diálogo ecumênico.
Há uma diferença básica e fundamental de visão sobre a natureza de Deus e do
homem. Um lado afirma que sua posição é consistente com o Cristianismo
apostólico, com o depósito apostólico, e consistente com o ensinamento da vida
da Igreja primitiva e da Igreja de todos os tempos. O outro lado começa com a
Reforma. Ambos os lados alegam ter o apoio do Novo Testamento.
Os escritos de Lutero sobre a Divina natureza do amor não
são somente interessantes, mas também valiosos, não só penetrantes, mas em uma ênfase acurados. De fato, se
considerarmos a doutrina de Lutero sobre o Divino amor em si, excluindo as suas
outras doutrinas, especialmente as referentes à natureza do homem, a natureza
da salvação, a natureza da justificação, a doutrina da predestinação e graça,
encontra-se uma visão não diferente daquela do antigo Cristianismo Ortodoxo. Às
vezes Lutero pode até mesmo parecer ser um pouco inclinado misticamente. A
descrição bem conhecida de Lutero do amor Cristão como “eine quellende Liebe” (um amor jorrante sempre fluindo) é em si
uma visão Ortodoxa. Para Lutero, como para os Padres da Igreja, esse amor não
tem necessidade de nada, não é causado, não vem para a existência por causa de
um objeto desejado, não é despertado por qualidades desejáveis de um objeto.
Ele é a natureza de Deus. Mas, ao mesmo tempo, é Deus Que cria a humanidade e
daí o amor de Deus por essa humanidade, apesar de não necessitado de nada e
atraído por nada, ama a humanidade não por causa de um valor do homem, mas
porque há um valor no homem porque ele é criado por Deus. Aqui está a diferença
e é na verdade uma grande divisão quando se considera visões sobre outros assuntos
intimamente ligados com a natureza do amor.
Na
literatura monástica e ascética dos primeiros tempos Cristãos a palavra e ideia
de perfeição são confrontadas com frequência. O monge busca perfeição; o monge
quer começar a ser estabelecido no caminho que possa conduzir à perfeição. Mas
é este o resultado do monasticismo? São as tendências monásticas e ascéticas do
inicio do Cristianismo que trazem a ideia de perfeição, que trazem a ideia de
luta e esforço espiritual? É nosso Senhor, e não os monges, que injeta o
objetivo de perfeição na própria estrutura do pensamento Cristão inicial. No Evangelho de São Mateus (5:48) nosso
Senhor comanda: “Sede vós perfeitos, como é perfeito o vosso Pai, Que está nos
céus.”
A vida monástica e ascética tradicional incluiu entre
suas atividades filantropia, oração e jejum. Foram essas práticas impostas
sobre um autêntico Cristianismo pelo monasticismo ou elas foram incorporadas na
vida monástica e ascética do Cristianismo original? No Evangelho de São Mateus é de novo nosso Senhor e Redentor Que
iniciou a filantropia, oração e jejum. Nosso Senhor poderia muito facilmente
ter abolido estas práticas. Mas, ao invés de aboli-las, nosso Senhor as purificou,
deu a elas o status correto dentro da vida espiritual que é praticá-las sem dar
nenhuma demonstração, nem hipocrisia, nem glória por estar fazendo. É a perspectiva
espiritual apropriada que nosso Senhor comanda. “Guardai-vos de fazer a vossa
esmola diante dos homens, para serdes vistos por eles: aliás, não tereis
galardão junto de vosso Pai, Que está nos céus” (6:1). “Quando pois deres
esmola, não faças tocar trombeta diante de ti, como fazem os hipócritas nas
sinagogas e nas ruas, para serem glorificados pelos homens. Em verdade vos digo
que já receberam o seu galardão. Mas, quando tu deres esmola, não saiba a tua
mão esquerda o que faz a tua direita. Para que tua esmola seja dada
ocultamente: e teu Pai, Que vê em segredo, te recompensará publicamente” (6:2-4).
E oração é ordenada que seja feita da mesma maneira para assegurar sua natureza
espiritual.
Nessa conjuntura Nosso Senhor instrui Seus seguidores a
usar a oração do “Pai Nosso,” uma oração que é tão simples, no entanto, tão
profunda, uma oração que contem em si uma glorificação do nome de Deus, contem
também uma invocação da vinda do reino de Deus, uma oração que reconhece que a
vontade de Deus inicia tudo e que sem a vontade de Deus o homem está perdido. É
uma oração de humildade em que ela não pede nada além do sustento diário. É uma
oração de solidariedade humana em perdão, pois ela pede para que Deus nos
perdoe somente como nós perdoamos os outros, e nisso uma profunda realidade da
vida espiritual é retratada, uma vida que une o homem a Deus somente se o homem
se unir a outros homens, com a humanidade, em perdão. E a seguir tem o pedido
para ser protegido das tentações, e se cair em tentação, o pedido para sermos
libertados dela. Tão curta, tão simples, e no entanto, tão profunda tanto
pessoal como cosmicamente. É o monasticismo uma distorção do Cristianismo
autêntico porque os monges recitam o Pai Nosso pela instrução e pelo comando de
nosso Senhor? Se o monasticismo usasse oração livre, espontânea, então ele
poderia ser apontado como faltoso por não “seguir” o comando de nosso Senhor.
Mas esse não é o caso. É o monasticismo um desvio por seu uso constante do Pai
Nosso. Nosso Senhor foi específico: quando rezarem rezem isso. Ele não impediu
outras orações, mas proeminência e prioridade são para serem dadas ao Pai
Nossas. Na verdade, é certamente estranho para nosso Senhor restringir a frequência
de oração. As “vãs repetições,” ou mais acuradamente em grego, a proibição de
“proclamar palavras vazias, como os gentios, que pensam que pensam que por
muito falarem serão ouvidos.” Isso é em essência diferente da intenção de nosso
Senhor. E nosso Senhor diz mais sobre o assunto, um assunto considerado importante
por Ele. No Evangelho de São Mateus
(9:15) nosso Senhor deixa marcado que quando Ele for levado embora, então os
Seus discípulos jejuarão. No Evangelho de
São Mateus (17:21) nosso Senhor explica para Seus discípulos que eles são incapazes
de expulsar a casta de demônios “porque essa casta de demônios não se expulsa
senão pela oração e pelo jejum.” Esse versículo, é verdade, não está em todos
os manuscritos antigos. Está, porém em suficientes manuscritos antigos e está
contido no Evangelho de São Marcos
(9:29). É obvio que nosso Senhor determina uma especial eficácia para oração e
jejum.
Castidade é um objetivo monástico e ascético. Não somente
um celibato externo, mas também uma interna castidade de pensamento. É isso também
algo imposto sobre o Cristianismo original e autêntico por um tipo helenístico
de pensamento, ou está contido no depósito original e Bíblico do Cristianismo?
De novo é nosso Senhor que coloca o caminho do celibato e da castidade. No Evangelho de São Mateus (19:10-12) os
discípulos perguntam a nosso Senhor se é conveniente casar. “Nem todos podem
receber esta palavra, mas só aqueles a quem foi concedido. Porque há eunucos
que assim nasceram do ventre da mãe; e há eunucos que foram castrados pelos
homens; e há eunucos que se castraram a si mesmos por causa do reino dos céus.
Quem pode receber isto, receba-o.” O objetivo monástico e ascético simplesmente
“segue” o ensinamento de nosso Senhor. O Cristianismo original jamais impôs
celibato. Ele foi, precisamente como nosso Senhor colocou, somente para aqueles
a quem foi concedido, somente para aqueles que fossem capazes de aceitar tal
caminho. Mas o caminho era um caminho autenticamente Cristão de espiritualidade
colocado por nosso Senhor. No inicio do Cristianismo, nem mesmo padres e bispos
eram requeridos a serem celibatários. Era uma questão de escolha. Mais tarde a
Igreja achou sábio requerer celibato dos bispos. Mas no Cristianismo Oriental
celibato nunca foi exigência para alguém ser ordenado padre. A escolha de casar
ou permanecer no celibato tinha que ser feita antes da ordenação. Se alguém já
era casado antes da ordenação, então esse alguém era requerido que se
mantivesse casado não obstante a Igreja antiga tenha testemunhado exceções a
este caso, Se alguém não era casado antes da ordenação, então era requerido que
continuasse no celibato. A Igreja Romana, não a Igreja Ortodoxa Oriental,
estendeu o requerimento de celibato para os padres e teve um tempo muito
difícil tentando forçar isto através dos séculos. Não se pode forçar nunca
formas de espiritualidade sobre uma pessoa e esperar resultados espirituais
frutíferos. As palavras de nosso Senhor soam com sabedoria — a quem foi
concedido, para aqueles que podem viver nesta forma de espiritualidade.
Pobreza não é o
objetivo mas o ponto inicial da vida monástica e ascética no Cristianismo do
inicio. Foi este um precedente estabelecido por Santo Antonio, uma nova noção e
movimento nunca antes contido no pensamento Cristão? De novo é nosso Senhor Que
estabelece o valor espiritual da pobreza. No Evangelho de São Mateus (19:21) nosso Senhor comanda ao homem rico
que havia afirmado que houvera mantido todos os mandamentos: “Se queres ser
perfeito, vai, vende tudo que tens e dá-o aos pobres... e vem e segue-Me.” Não
foi Santo Antonio que estabeleceu o precedente. Foi, isso sim, Santo Antonio
que ouviu a palavra de nosso Senhor e a pôs em ação, que “fez a palavra do
Senhor.” Foi Cristo, o Deus-Homem que pôs o ideal da perfeição, que nos
comandou a sermos perfeitos (ver também 5:48), que pôs o ideal de pobreza como
ponto-de-partida de uma certa forma de vida espiritual. Em outro lugar do Evangelho de São Mateus (13:44) Cristo
marca um ponto similar, afirmando que se vende tudo em troca do reino dos céus.
“O reino dos céus é semelhante a um tesouro escondido num campo que um homem
achou e escondeu; e pelo gozo dele, vai, vende tudo quanto tem e compra aquele
campo.”
O
Cristianismo todo exalta a humildade. Não deveria então ser uma surpresa que a
espiritualidade monástica e ascética tivessem seu foco na humildade. No Evangelho de São Mateus (18:4) nosso
Senhor proclama que “aquele que se tornar humilde como este menino, esse é o
maior no reino dos céus.” Em outro lugar, (23:12), nosso Senhor diz que “o que
se exaltar a si mesmo será humilhado: e o que a si mesmo se humilhar será
exaltado.” A ênfase na humildade pode parecer auto-evidente. Por trás dela, no
entanto, está uma realidade da natureza de Deus na qual poucos prestam atenção.
Na Encarnação dois elementos bem centrais de qualquer espiritualidade são
evidenciados claramente — o amor e humildade de Deus. A ideia de que a humildade
tem raízes em Deus, pode parecer assombrosa. A humildade de Deus não pode, por
certo, ser considerada na mesma luz que a humildade ascética, ou em qualquer
forma de humildade humana. Porém, as formas humanas de humildade são derivadas
da própria natureza de Deus, assim como o comando para amar está enraizado no
amor de Deus para os homens. A humildade de Deus é precisamente que sendo Deus
Ele deseja, Ele quer estar em comunhão com tudo e tudo é inferior a Deus. Isso
tem grande significado teológico, pois revela o valor de todas as coisas criadas,
um valor desejado por Deus. Há aqui até mesmo um paralelo com os santos que
amaram os animais e as flores. E desta ideia, intrinsecamente deriva uma ideia
da Encarnação e kenosis de Deus o
Filho, pela qual se pode ver claramente a real origem Divina na ação de Cristo
em ensinar os “outros.”
Na própria noção de uma espiritualidade vertical uma
preocupação com os outros é pressuposta. E enquanto alguém está ascendendo para
Deus — uma abominação para Nygren — Seu companheiro homem deve ser incluído nas
dimensões da espiritualidade. Através da Encarnação todas as formas de
existência humana são santificadas. Através da Encarnação tanto o amor quanto a
humildade de Deus são tornados conhecidos. E o homem é feito pra amar a Deus e
seu companheiro na humanidade, porque o amor contém um valor absoluto e
positivo, um valor derivado porque amor é a própria natureza de Deus. E o homem
tem que experimentar a humildade porque humildade também pertence a Deus e
assim seu valor é derivado de Deus. Mas ficar internamente cheio de amor e
humildade não é fácil. Não é somente exigido o conhecimento do fato de que Deus
é amor e humildade é Divina. É necessária a completa purificação da nossa
natureza interna por Deus. E isso é uma luta, a luta espiritual que deve ser
enfrentada para se entrar e se manter na realidade do amor e da humildade. O
caminho do monasticismo e do ascetismo é um caminho autêntico, um caminho
também ordenado por nosso Senhor.
Os Escritos de São Paulo e a Interpretação da Reforma.
Os escritos de ou
atribuídos a São Paulo formam um ponto crítico na grande divisão inteira entre
as Igrejas da Reforma e as Igrejas Católicas Ortodoxas e Católicas Romanas. A Epístola aos Romanos é uma das
referências mais importantes desta controvérsia. Esta epístola e a Epístola aos Gálatas formam a base com a
qual Lutero desenvolveu a sua fé, doutrina e justificação, uma doutrina que ele
mesmo caracterizou em seu prefácio para seus escritos Latinos como um entendimento
totalmente novo das Escrituras. Estas duas epístolas continuam a ser os pontos
principais de referência para os teólogos contemporâneos da tradição da
Reforma.
Foi este novo
entendimento das Escrituras que a rejeição do monasticismo obteve na
Reforma. Em geral, não é exagero afirmar que este pensamento considera São
Paulo como o único que entendeu a mensagem Cristã. Além disso, não é o próprio
São Paulo nem o São Paulo do inteiro corpus
de sua obra, mas sim o entendimento de Lutero sobre São Paulo. Dessa
perspectiva, os autênticos interpretes dos ensinamentos e do trabalho redentor
de nosso Senhor são São Paulo, como entendido por Lutero, depois Marcion,
depois O Bem aventurado Agostinho, e depois Lutero. Marcion foi condenado pela
Igreja inicial inteira. Agostinho, de certa forma, de fato, antecipa Lutero em
certas posições, mas de modo algum na doutrina da justificação e no específico
entendimento de fé de Lutero. É mais a doutrina da predestinação de Agostinho,
de graça irresistível, e a sua doutrina da total depravação do homem contida em
sua “novela” para citar São Vicente de Lerins — doutrina do pecado original que
influenciou Lutero, que era ele próprio, um monge agostiniano.
A rejeição do monasticismo definitivamente surgiu da
ênfase colocada sobre a salvação como um dom grátis de Deus. Tal posição é
completamente acurada, mas seu entendimento específico foi inteiramente
contrário ao da Igreja do inicio. Que salvação era um dom grátis de Deus e que
o homem era justificado por fé, nunca foi um problema para o Cristianismo do
inicio. Mas, na perspectiva e ênfase de Lutero qualquer tipo de “obra,” especialmente
a dos monges em sua luta ascética, contradizia a natureza grátis da graça e o
dom grátis da salvação. Se alguém era justificado pela fé, então — aí segue a
linha de pensamento de Lutero — esse alguém não era justificado por “obras.”
Para Lutero justificação “pela fé” significava uma justificação extrínseca, uma
justificação inteiramente independente de qualquer modificação interna das
profundezas da vida espiritual da pessoa. Para Lutero “justificar” — dikaion — significava declarar alguém
justo, não “fazer” esse alguém justo — é um apelo para uma justiça extrínseca
que na verdade é uma ficção espiritual. Lutero criou um legalismo muito mais
sério do que o legalismo que ele detectou no pensamento e prática Católico
Romano do seu tempo. Além disso, a
doutrina legalística da justificação extrínseca de Lutero é espiritualmente
grave, pois é uma transação legal que na realidade não existe e não pode
existir. Em nenhum lugar era a ênfase nas “obras” tão forte, pensou Lutero,
como no monasticismo. Então o monasticismo tinha que ser rejeitado, e o foi.
Mas Lutero leu demais sobre a ênfase de São Paulo na fé, sobre justificação
pela fé, e sobre o dom grátis da graça da salvação. São Paulo está em
controvérsia direta com o judaísmo, especialmente em sua Epístola aos Romanos.
São
as “obras da lei,” a lei como definida e interpretada e praticada pelo judaísmo
no tempo de São Paulo. Nosso Senhor tem a mesma reação para com o entendimento
externalizado e mecânico da lei. Na verdade, o próprio texto da Epístola aos Romanos revela em cada
passagem que São Paulo está comparando a lei externa do judaísmo com a novidade
do entendimento espiritual da lei, com a novidade da revelação de Deus em Jesus
Cristo através da Encarnação, Morte e Ressurreição de nosso Senhor, Deus
tornou-Se homem. Deus entrou na história humana o que é de fato uma novidade
radical. Mas entender mal a crítica de São Paulo às “obras,” pensando que São
Paulo está se referindo aos “obras” comandadas por nosso Senhor, ao invés do
entendimento judaico de “obras da lei” é uma má leitura de natureza
fundamental. Porém, é verdade que Lutero tem um ponto ao considerar a direção
específica na qual o sistema-de-mérito Católico Romano tinha ido como um ponto
de referência similar ao sistema legal judaico. Como resultado do passado de
Lutero, e do seu meio teológico, quando ele lia qualquer coisa em São Paulo a
respeito de “obras” ele imediatamente pensava em sua experiência como monge e
no sistema de méritos e indulgências no qual tinha sido criado.
Deve
ser enfatizado com força que Lutero de fato protege um aspecto da salvação, a
causa e fonte em si da redenção e da graça. Mas ele negligencia o outro lado, o
aspecto da participação do homem nesse dom grátis da Divina iniciativa e graça.
Lutero teme qualquer ressurgência do sistema católico romano de mérito e
indulgência, ele teme qualquer tendência que possa se constituir numa
verdadeira atitude Pelagiana, qualquer tendência que venha permitir que o homem
acredite que é a causa ou a fonte, ou melhor, o vetor principal da salvação. E
aqui Lutero está correto. A distinção de Nygren sobre Eros-Ágape está correta
neste contexto, pois qualquer espiritualidade que omite o Ágape e se concentra
somente no Eros, no esforço do homem para vencer a influência de Deus, é
fundamentalmente não-Cristã. Mas o
assunto não é tão simples. Ambos os extremos são falsos. Deus quis
livremente um sinergético caminho-de-redenção no qual o homem deve participar
espiritualmente. Deus é o ator, a causa, o iniciador, aquele que completa toda
atividade redentora. Mas é o homem que deve responder espiritualmente ao dom
grátis da graça. E nessa resposta existe um lugar autêntico para a espiritualidade
do monasticismo e do ascetismo, os quais não tem nada a ver com as “obras da
lei,” ou com o sistema de mérito e indulgência.
Em sua Epístola aos Romanos São Paulo escreve
na própria introdução (1:4-5) que através de Jesus Cristo “recebemos a graça e o
apostolado, para a obediência da fé entre todas as gentes pelo Seu Nome.” A
noção de “obediência na fé” tem um significado para São Paulo. É muito mais que
um simples reconhecimento de uma fé colocada dentro de alguém por Deus. É ao
invés, uma noção ricamente espiritual, que contém dentro dela uma completa
espiritualidade de atividade de parte do homem — não que a atividade vá vencer
a graça de Deus, mas precisamente que a atividade espiritual é a resposta à
graça de Deus, realizada com a graça de Deus, para ser preenchido com a graça
de Deus. E será uma “obra” espiritual em progresso, que não pode ser nunca
paralisado, e uma “obra” totalmente estranho às “obras” da lei judaica.
São
Paulo escreve (2:6) que Deus “recompensará cada um segundo as suas obras.” Se
São Paulo estivesse tão preocupado com a palavra “obras,” se ele temesse que os
leitores Cristãos de sua epístola pudessem interpretar “obras” em um sentido
totalmente diferente do que ele pretendia, ele teria certamente sido mais
cauteloso. Mas São Paulo distingue claramente entre as “obras” da lei judaica e
as “obras” do Espírito Santo requeridas de todos os Cristãos. Em consequência,
é difícil confundir essas duas perspectivas, e é significativo que a Igreja
inicial nunca tenha confundido, pois eles entendiam o que São Paulo escreveu. Aconteceram
às vezes — apesar da lucidez do pensamento de São Paulo — tendências de cair
não na interpretação unilateral de Lutero, mas ao contrário, de cair algo
espontaneamente num tipo-Eros de esforço.
São os “praticantes da lei que serão justificados” (2:13).
A noção de “praticantes” implica em ação, atividade. Em outro lugar, na mesma
epístola (5:2) São Paulo escreve que através de nosso Senhor Jesus Cristo
“temos entrada pela fé a esta graça, na qual estamos firmes,.” A própria ideia
de “entrada pela fé” é dinâmica e implica em atividade espiritual por parte da
humanidade.
Depois da longa proclamação da graça de Deus, e da
impotência das “obras da lei” em comparação com as “obras” da nova realidade do
Espírito, São Paulo recorre à tradicional exortação espiritual (6:12 e segs.)
“Não reine portanto o pecado em vosso corpo mortal, para lhe obedecerdes em
suas concupiscências; nem tão pouco apresenteis vossos membros ao pecado por
instrumentos de iniquidade.” A exortação pressupõe que o homem tem algum tipo
de atividade espiritual e controle sobre sua existência interior. O próprio uso
da palavra “instrumentos” invoca a ideia de luta, de guerra espiritual, a
própria natureza da “prova severa” do monasticismo.
No mesmo capítulo (6:17) São Paulo escreve: “Mas graças a
Deus que, tendo sido servos do pecado, obedecestes de coração à forma de
doutrina a que fostes entregues.” No segundo capítulo da Epístola aos Romanos (2:15) São Paulo escreve sobre o aspecto
universal da “lei” que “está escrita em seus corações,” da humanidade, um
pensamento com profundas implicações teológicas. Usando a imagem do coração São
Paulo está enfatizando o aspecto mais profundo da vida interior da humanidade,
pois este era o uso da imagem do coração entre os hebreus. Quando ele escreve
que eles obedeceram “de coração,” São Paulo está atribuindo algum tipo de
atividade espiritual para a “obediência” que brota “do coração.” E a que eles
passaram a ser obedientes? A uma forma ou padrão de ensinamento ou doutrina
entregue a eles — este é precisamente o depósito
apostólico, o corpo do ensinamento inicial Cristão ao qual eles responderam
e se tornaram obedientes. E fazendo assim, eles se tornaram “escravizados pela
justiça,” a justiça da nova lei, da vida do Espírito (6:18). E o “fruto” de se
tornarem escravizados a Deus é precisamente santificação que conduz à vida
eterna (6:22). Através é um processo, através é uma atividade espiritual
dinâmica por parte do homem. São Paulo se torna mais explícito na distinção
sobre a velha e a nova lei (7:6). “Mas agora estamos livres da lei, pois
morremos para aquilo em que estávamos retidos; para que sirvamos em novidade de
espírito, e não na velhice da letra.”
São Paulo escreve que “nós somos filhos de Deus. E, se nós
somos filhos, somos logo herdeiros também, herdeiros de Deus e co-herdeiros de
Cristo” (8:16b-17). Mas tudo isto tem uma condição, tem uma provisão, pois há
um importantíssimo “se é certo” “Se é certo que com Ele padecemos, para que
também com Ele sejamos glorificados.” Nossa glorificação, segundo São Paulo, é
contingenciada por um poderoso “se” e este “se” nos conduz para a realidade
espiritual, a realidade espiritual do “co-sofrimento.” O próprio uso da palavra
“co-sofrimento” pressupõe a realidade da ideia do “co-sofrimento” e ambas
pressupõe uma ação ou atividade espiritual ativa, dinâmica por parte daquele
que co-sofre, senão não há significado no “co.”
Na Epístola aos
Romanos (12:1) São Paulo usa linguagem que não teria significado se o homem
fosse meramente um objeto passivo no processo redentor, se a justificação por
fé fosse uma ação que teria lugar somente no nível Divino. “Rogo-vos pois,
irmãos, pela compaixão de Deus, que apresenteis os vossos corpos em sacrifício
vivo, santo e agradável a Deus, que é o vosso culto racional.” São Paulo está
pedindo ao Cristão para apresentar, uma
realidade que pressupõe e requer atividade humana. Mas não só “apresentar” mas
“apresentar” o corpo como um sacrifício vivo, tão santo, tão aceitável ou
agradável a Deus. E isto São Paulo considera nosso “culto racional” ou nossa
“adoração espiritual.” A ideia e a linguagem falam por si. Usando o imperativo,
São Paulo nos comanda: “E não vos conformeis com este mundo, mas
transformai-vos pela renovação do vosso entendimento, para que experimenteis
qual seja a boa, agradável, e perfeita vontade de Deus.” Tomada em si e fora do
contexto esta linguagem poderia ser mal interpretada como Pelagiana, pois aqui
é o homem que está transformando a mente, é o homem que está comandado a ativar
a vida espiritual. Tal interpretação é, por certo, incorreta mas revela o que
se pode fazer com a totalidade do pensamento teológico de São Paulo se não se
entender o conjunto todo, se não se entender que a visão dele é profundamente
sinergética.
Sinergia não significa que duas energias são iguais.
Significa, isso sim, que existem duas vontades — uma, a vontade de Deus que
precede, acompanha e completa tudo que é bom, positivo, espiritual e redentor,
uma que quis que o homem tivesse uma vontade espiritual, uma participação
espiritual no processo redentor; a outra é a vontade do homem que deve
responder, cooperar e “co-sofrer.” Em 12:9, São Paulo nos exorta a “nos
apegarmos ao bem.” E em 12:12 nos exorta a “perseverar na oração.” Tais
posições certamente não excluem as espiritualidades monástica e ascética mas as
pressupõe.
Celibato
é uma parte da vida monástica e ele também tem sua fonte nos ensinamentos do
Novo Testamento. Em I Coríntios 7:1-11
São Paulo encoraja tanto o casamento quanto o celibato — ambos são formas de
espiritualidade Cristã, e São Paulo tem muito a dizer a respeito de casamento
em suas outras epístolas. Mas seu ponto é que celibato é uma forma de espiritualidade
para alguns, e que por isso ele não pode ser excluído das formas de espiritualidade
dentro da Igreja. No versículo 7 São Paulo escreve que gostaria que todos
fossem como ele. Mas ele constata que cada pessoa tem seu próprio dom de Deus.
“Digo, porém, aos solteiros e às viúvas, que lhes é bom se ficarem como eu.
Mas, se não podem conter-se, casem-se (vers. 8 e 9). São Paulo sumarizado: “aquele
que decidiu em seu coração se manter virgem, está bem. Assim, portanto, ambos,
o que casa com sua noiva (virgem) faz bem, e o que não se casa faz melhor.” A
prática monástica do celibato está precisamente não excluída pelo Novo Testamento.
Ao contrário, ela é até encorajada tanto pelo Senhor, quanto por São Paulo — e
sem condenação ao casamento. A decisão não pode ser forçada. Ela deve, isto
sim, vir do coração. E, de fato, não é para todos.
A comparação da vida espiritual com a disputa de uma
corrida e com uma luta está ao longo do Novo Testamento. Sem diminuir de sua
visão teológica a base de Deus—isto é, que Deus inicia tudo — São Paulo escreve
em I Coríntios 9:24- 27 de uma
maneira que tomada de per si, de fato pareceria Pelagiana, pareceria realmente
com um pensamento em que toda essência da salvação dependeria do homem. Mas no
contexto total de sua teologia não há contradição, pois há sempre duas vontades
na redenção — a Divina que inicia, e a humana, que responde e está na própria
resposta que recebeu. “Não sabeis vós que os que correm no estádio, todos na
verdade correm, mas um só leva o prêmio? Correi de tal maneira que o alcanceis.
E todo aquele que luta de tudo se abstém; eles o fazem para alcançar uma coroa
corruptível, nós, porém, uma incorruptível. Pois eu assim corro, não como a
coisa incerta: assim combato, não como batendo no ar. Antes subjugo o meu
corpo, e o reduzo à servidão, para que, pregando aos outros, eu mesmo não venha
de alguma maneira ficar reprovado.” Nesse texto nós encontramos a corrida — a
corrida espiritual — e o prêmio, nós encontramos a estrutura gramatical e de
pensamento “para alcançar,” uma estrutura que implica em contingência e não em
certeza. Nós encontramos a corrida como uma luta espiritual na qual “autocontrole
em tudo” deve ser exercitado. E então, São Paulo descreve sua própria batalha
espiritual — ele trata seu corpo severamente, ele o conduz com se fora a um
escravo, e com que propósito? Para que ele não venha a ficar reprovado. A
passagem inteira é muito monástica e ascética em seu conteúdo.
Apesar da certeza de São Paulo sobre a realidade objetiva
de a redenção ter vindo através de Cristo, como um dom Divino, ele não considera
que seu próprio destino espiritual esteja incluído nessa redenção objetiva, que
está aqui agora, a menos que ele participe nela — e até o final da corrida. Em
10:12 ele nos previne “aquele pois que cuida estar em pé, olhe não caia.” Em 11:28
ele escreve: “Examine-se pois o homem a si mesmo, ...” Nesse texto o
“examine-se” está entre os mais sérios desses contextos, pois é mencionado em
conexão com a Santa Eucaristia, da qual se fala tão objetivamente que se se
“comer esse pão” ou “beber desse cálice do Senhor,” “indignamente” esta pessoa
“será culpada do corpo e do sangue do Senhor” e “trará condenação para si
próprio” — por esta razão, continua São Paulo, muitos estão fracos, doentes, e
muitos morreram. Mas nosso foco aqui está no autoexame, naqueles que cuidam estar
em pé. Este de novo é um aspecto integral da vida monástica e ascética; isto é,
um exame constante da vida espiritual. Em II
Coríntios 13:5 São Paulo enfatiza o autoexame: “Examinai-vos a vós mesmos ,
se permaneceis na fé; provai-vos a vós mesmos.”
Em I Coríntios 15:1-2
São Paulo introduz um significativo “se” e “também.” “Também vos notifico, irmãos, o Evangelho que já vos tenho anunciado;
o qual também recebestes, e no qual também permaneceis. Pelo qual vós também sois salvos se o retiverdes tal como vo-lo tenho anunciado.”
Em I Coríntios 14:15
São Paulo fala de orar com o espírito e com a mente, um pensamento que tece o
seu caminho através da literatura monástica e ascética. O uso da mente em
oração encontra sua mais completa expressão no uso controverso da “mente” no
pensamento de Evagrio Ponticus. O uso, mesmo dentro do seu contexto geral no
capítulo, é claro. “Orarei com o espírito, mas também orarei com o entendimento
(mente); cantarei com o espírito, mas também cantarei com o entendimento.”
O hino para o amor, Ágape, de São Paulo usa inteiro o I Coríntios 13. Apesar de interpretações
mais tardias do uso da palavra “fé” neste capítulo, especificamente as
interpretações que entraram no pensamento Cristão com a Reforma, não há mal-entendido
sobre esse “hino ao amor” na Igreja do início; de fato, na história do pensamento
Cristão até a Reforma ele era entendido bastante diretamente. É só através de
um convulsionado método exegético de interpretação imposto por um específico —
e novo — entendimento teológico que esse grande “hino ao amor” teve que ser
entendido em distinguindo diferentes significados ligados à palavra “fé.” “Ainda
que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos. E ainda que eu tivesse o dom
da profecia. E conhecesse todos os mistérios e toda a ciência. E ainda que
tivesse toda a fé, de maneira tal que transportasse os montes. Ainda que
distribuísse toda a minha fortuna para sustento dos pobres, e ainda que
entregasse meu corpo para ser queimado — ainda que eu tivesse tudo isso, mas
não amor, então seria “nada,” seria “como o metal que soa ou como o sino que
tine” “nada disso me aproveitaria.” São Paulo é bem explicito quanto ao que o
amor é. “O amor é sofredor, é benigno, não é invejoso, não se trata com
leviandade, não se ensoberbece, não se porta com indecência, não busca os seus
interesses, não se irrita, não suspeita mal. O amor não folga com a injustiça,
mas folga com a verdade. Tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. O
amor nunca falha: mas havendo profecias, serão aniquiladas; havendo línguas
cessarão, havendo ciência, desaparecerá... Agora, pois permanecem a fé, a
esperança e o amor, estas três, mas a maior destas é o amor.” O objetivo da
luta monástica e ascética, da “prova difícil,” é amor — amar Deus, amar a
humanidade, amar todas as coisas criadas, ser penetrado pelo amor de Deus,
participara no amor, que é Deus, que flui de Deus, e entrar em união com Deus,
com amor. Com frequência a literatura monástica fala em “realizar” esse amor,
como se fosse trabalho do homem. Mas esse não é o contexto total de amor em
literatura monástica, nem mesmo naqueles textos que parecem dizer que tudo não
é nada mais do que esforço do homem na “prova.” Essa linguagem é usada porque é
espontânea com a natureza espiritual.
Essa linguagem é usada porque ela corre paralela com
aquele conhecimento assumido — o de que Deus é a fonte de tudo. E ainda São
Paulo mesmo, com frequência, usa linguagem que poderia vir diretamente de
afirmações monásticas. É verdade que, ambas seriam tomadas fora do seu contexto
total, mas é verdade que são usadas duas linguagens — a linguagem referente a
Deus como fonte, como o iniciador, a graça de Deus, o dom de toda
espiritualidade; e a linguagem que se concentra na atividade do homem, na
resposta do homem ao amor e trabalho redentor de Deus em Jesus Cristo e através
do Espírito Santo. Quando uma linha de pensamento está sendo usada, ela de modo
nenhum, nega a outra linha de pensamento. É bem o oposto, pois as literaturas
monásticas e ascéticas só podem falar da atividade do homem, se estiver pressuposto
que Deus realizou a atividade redentora através de nosso Senhor, e que Deus
está trabalhando no homem através do Espírito Santo. Senão, tudo que está
escrito é sem sentido, temporária e definitivamente. O Comando de São Paulo em I Coríntios 14:1 a “seguir o amor, e
procurar com zelo os dons espirituais” é correspondente diretamente a espiritualidade
monástica e ascética.
Em II Coríntios 2:9
São Paulo escreve no mesmo espírito que um abade pode empregar com seus
noviços: “E para isso vos escrevi também, para por esta prova saber se sois
obedientes em tudo.” Obediência é um tema e realidade importante na “prova”
monástica e ascética e o próprio tema da obediência é mencionado com frequência
no Novo Testamento.
As literaturas monástica e ascética usam com frequência
os termos “cheiro” e “aroma” e de novo, a fonte é o Novo Testamento. Em II Coríntios 2:14-15 São Paulo escreve: “...
manifesta em todo o lugar o cheiro do Seu conhecimento. Porque para Deus somos
o bom cheiro de Cristo, nos que se salvam e nos que se perdem. Para estes
certamente cheiro de morte para a morte: mas para aqueles cheiro de vida para a
vida.”
Em II Coríntios 3:18
São Paulo usa uma expressão que com frequência é encontrada na literatura
ascética — “de glória em glória.” “Mas todos nós, com cara descoberta,
refletindo como um espelho a glória do Senhor, somos transformados de glória em
glória na mesma imagem, como pelo Espírito do Senhor.” A estrutura verbal grega
em todo Novo Testamento não pode ser suficientemente enfatizada, pois ela
carrega uma atividade dinâmica que é raramente encontrada em outras línguas e
em traduções. Nesse texto a ênfase está no processo de “estarmos sendo mudados.”
Em outros lugares a ênfase está, com frequência, em “estarmos sendo salvos” —
ao invés de “estamos mudados” ou “estamos salvos.” Mas, principalmente quando o
processo está em foco, o dinamismo é expresso pela estrutura verbal de
“estarmos sendo salvos.” Nesse texto é significativo que a natureza objetiva é
expressa por “tendo sido descobertos,” enquanto o processo em andamento de
nossa participação no processo de salvação é expresso por “estamos sendo
transformados.” Aqui está expresso o dinamismo da sinergia.
Em II Coríntios 4:16
São Paulo mais uma vez enfatiza o dinamismo e processo da realidade espiritual
no homem. .”.. o interior (vida) se renova de dia em dia.” A vida monástica
tenta responder a tal texto por regularidade diária de oração, meditação, auto
exame e veneração — precisamente para tentar “renovar” diariamente nossa vida
espiritual “interior.” Em 10:15 o aspecto dinâmico do crescimento é enfatizado
e precisamente em referência a “fé” e “regra.” .”.. antes tendo esperança de
que, crescendo a vossa fé, seremos abundantemente engrandecidos entre vós,
conforme a nossa regra.” Em 4:6 São Paulo de novo coloca a profundidade da vida
espiritual do homem no “coração,” algo que o monasticismo Oriental desenvolverá
ainda em sua vida de oração.
O capítulo cinco inteiro de II Coríntios é um texto excepcionalmente importante. Nele, como em
outros lugares, São Paulo usa linguagem que, quando usada por outros, aflige
dolorosamente muitos eruditos que trabalham com a perspectiva da Reforma — ele
usa a noção de “agradar a Deus,” algo que alguns eruditos acham que é
indicativo de uma solicitação do homem para “ganhar” o favor de Deus. Mas
quando São Paulo usa tal linguagem ela passa em silêncio, ela passa sem objeção
— precisamente porque São Paulo estabeleceu sua posição de que Deus é a fonte
de tudo. Mas as literaturas monástica e ascética também pressupõem que Deus
inicia e é a fonte de tudo. Mas está na própria natureza da vida espiritual
diária no monasticismo e na espiritualidade ascética focar na atividade do
homem. É precisamente foco, não posição teológica. “Pelo que muito desejamos
também ser-Lhe agradáveis, quer presentes, quer ausentes. Porque todos devemos
comparecer ante o tribunal de Cristo, para que cada um receba segundo o que
tiver feito por meio do corpo, ou bem, ou mal. Assim que, sabendo o temor que
se deve ao Senhor, persuadimos os homens à fé.” Em II Coríntios 11:15 São Paulo escreve que cada um “terá seu fim conforme
as suas obras.” Também não é a primeira vez que o Novo Testamento usa a palavra
“feito,” uma palavra que se tornou sistematizada no monasticismo. Depois de uma
profunda exposição sobre a iniciativa de Deus no trabalho redentor de Cristo (5:14-20),
no qual São Paulo escreve que “Tudo isso provém de Deus que nos reconciliou
consigo mesmo por Jesus Cristo.” São Paulo escreve no versículo 20: “que vos reconcilieis
com Deus.” Além disso, ele não só usa a forma imperativa, como a precede com
“Rogamos-vos pois da parte de Cristo.” Sua linguagem aqui se torna sem sentido
a menos que haja atividade espiritual por parte do homem. E o que é mais, São
Paulo usa uma estrutura muito interessante em relação à “justiça de Deus,” pois
ele escreve que o trabalho redentor de Cristo foi realizado “para que Nele
fossemos feitos justiça de Deus.” Aqui o significado está em que “fossemos
feitos” e não em que “somos” ou em que “fomos feitos.” Está implícita uma
sinergia dinâmica. Isso é mais enfatizado em 6:1: “E nós, cooperando também com
Ele, vos exortamos a que não recebais a graça de Deus em vão.” E São Paulo, a
seguir, cita Isaias 49:8, no qual é dito que Deus “ouve” e “ajuda.”
Em II Coríntios 6:4-10
São Paulo escreve o que poderia ser um guia para a vida espiritual monástica.
“Antes, como ministros de Deus, tornando-nos recomendáveis em tudo: na muita
paciência, nas aflições, nas necessidades, nas angustias, nos açoites, nas
prisões, nos tumultos, nos trabalhos, nas vigílias, nos jejuns, na pureza, na
ciência, na longanimidade, na benignidade, no Espírito Santo, no amor não
fingido. Na palavra da verdade, no poder de Deus, pelas armas da justiça, à
direita e à esquerda. Por honra e por desonra, por infâmia e por boa fama...
como morrendo, e eis que vivemos... como contristados, mas sempre alegres: como
pobres, mas enriquecendo a muitos: como nada tendo, e possuindo tudo.”
As vigílias, os jejuns, a pureza, a gnosis ou conhecimento — isso tudo precisa estar refletido nas
vidas monástica e ascética. Além disso, São Paulo usa a imagem de guerra e se
refere a “armas da justiça.” A linguagem usada por São Paulo nesta passagem só
pode ter significado se o homem participar sinergicamente no processo redentor.
Se a doutrina da “justiça” no pensamento de São Paulo tem somente um significado
unilateral — isto é, a “justiça de Deus,” que é, por certo, a fonte de toda
justiça — então, porque a conversa de “armas da justiça” colocadas nas próprias
mãos, direita e esquerda, do homem? Se o homem é somente “considerado justo”
pelo “sacrifício vicarial” de nosso Senhor Jesus Cristo, qual a necessidade de
falar de “armas da justiça,” se não existir um segundo aspecto no processo
redentor que ontologicamente inclui a participação espiritual do homem? Em II Coríntios 10:3-6 continua com referencia
à “guerra” e de novo enfatiza “obediência.” “Porque andando na carne, não
militamos segundo a carne. Porque as armas da nossa milícia não são carnais,
mas sim poderosas em Deus, para destruição das fortalezas; Destruindo os
conselhos, e toda altivez que se levanta contra o conhecimento de Deus, e
levando cativo todo entendimento à obediência de Cristo; E estando prontos para
vingar toda desobediência, quando for cumprida a vossa obediência.”
São Paulo escreve em II
Coríntios 7:1 sobre purificação, sobre aperfeiçoamento da santificação e
sobre “temor de Deus,” Depois de se referir ao fato de que temos “tais promessas,”
ele exorta: “Purifiquemo-nos de toda a imundícia da carne e do espírito,
aperfeiçoando a santificação no temor de Deus.” Essa exortação é precisamente o
que as vidas monástica e ascética tentam implementar. Em 13:9 São Paulo escreve:
“e o que desejamos é a vossa perfeição.” Para que alguém seja aperfeiçoado,
esse alguém tem que já estar num certo nível previamente. O texto dá testemunho
da natureza dinâmica da fé, da vida espiritual em Cristo, do levantamento e
queda, e então do aperfeiçoamento.
Em II Coríntios 7:10
São Paulo fala em termos muito similares àqueles encontrados em literaturas
monástica e ascética, pois ele fala de “tristeza” que opera “arrependimento”
que conduz à “salvação.” “Porque a tristeza segundo Deus opera arrependimento
para a salvação, da qual ninguém se arrepende.” São Paulo contrasta essa
“tristeza piedosa” com a “tristeza do mundo que opera a morte.” O tema
“aflição” e “tristeza” sobre o pecado de alguém — precisamente “tristeza de
acordo com Deus” ou “tristeza piedosa” — é uma constante na vida espiritual
monástica.
São Paulo termina o texto de II Coríntios com uma exortação final. “Sede perfeitos, sede
consolados, sede de um mesmo parecer, vivei em paz; e o Deus de amor e de paz
será convosco.” Aqui a ênfase é novamente em “perfeição.” A sequência da
linguagem de São Paulo — se tomada de per si e fora de contexto — poderia
facilmente ser mal interpretada como se o homem causasse a ação de Deus, pois
ele escreve: “vivei em paz e.” É
precisamente esse e que introduz a
atividade de Deus. E o Deus de amor e paz “será convosco,” se vós conseguirdes
paz—então seria bem assim que este texto poderia ser interpretado, se nós não
possuíssemos o corpo dos textos de São Paulo. O que poderia ter acontecido com
o pensamento de São Paulo, é o que normalmente acontece com o pensamento
expresso nas literaturas monástica e ascética.
Ao lado da Epístola aos Romanos, a Epístola de São
Paulo aos Gálatas é outra obra do corpo de trabalhos de São Paulo citada
com muita frequência pelos teólogos da Reforma Luterana e Calvinista e pelos
teólogos que seguiram a esses nestas tradições teológicas. Elas foram também os
dois trabalhos mais citados pelo Bem-aventurado Agostinho para apoiar sua doutrina
de graça irresistível e predestinação. Mas encontra-se o mesmo problema em Gálatas; isto é, uma segunda linha de
pensamento que, tomada de per si, poderia ser interpretada num sentido
Pelagiano. O ponto aqui é, por certo, que ambas as visões são unilaterais, que
o pensamento de São Paulo é muito mais rico do que as interpretações
unilaterais se permitem, muito mais realista tanto para com a glória de Deus,
quanto para com a tragédia da experiência do homem no mal, corrupção e morte.
Mas São Paulo não só exalta a glória de Deus, o poder e iniciativa da graça,
mas também a alegria de uma redenção objetiva em que cada pessoa deve
participara para a redenção do homem ser completa.
No
primeiro capítulo dos Gálatas São
Paulo no versículo 10 usa linguagem que implica na procura do favor de Deus. “Porque,
persuado eu agora a homens ou a Deus? Ou procuro agradar a homens?” Num certo
ponto, em Gálatas 4:9 São Paulo se
pega caindo no muito compreensível uso da linguagem humana: “Mas agora
conhecendo a Deus, ou antes, sendo conhecidos de Deus...” Imprecisão de
linguagem ocorre até mesmo com São Paulo.
O segundo capítulo de Gálatas
provê iluminação do litígio da controvérsia central na teologia de São Paulo.
No contexto São Paulo está se referindo à hipocrisia de São Pedro em Antioquia,
pois ele comeu com os gentios até que aqueles do partido da “circuncisão” chegaram
de Jerusalém. Nesse momento São Pedro se retirou dos gentios, “temendo os que
eram da circuncisão.” São Paulo desafia São Pedro cara a cara. De novo a
controvérsia toda é entre as “obras da lei” e as “obras do Espírito,” entre as
leis do Judaísmo e as leis espirituais de Cristo como resultado direto do Seu
Divino trabalho redentor. É daí, nesse contexto, que São Paulo traz a doutrina
da justificação para a discussão. No versículo 16 São Paulo escreve: “Sabendo
que o homem não é justificado pelas obras da lei, mas pela fé em Jesus Cristo,
temos também crido em Jesus Cristo, para sermos justificados pela fé de Cristo,
e não pela obras da lei; porquanto pelas obras da lei nenhuma carne será
justificada.” Na construção grega usada por São Paulo existe um dinamismo, pois
temos crido “para sermos justificados” e “pela fé.” Essa última expressão
contém respiração, expansão da vida espiritual gerada por fé. É uma expressão
rica e sua totalidade e dinamismo não podem ser diminuídos por uma
interpretação reducionista. E o próprio uso de “para” tem implicações teológicas,
assim como a construção “sermos justificados.” São Paulo poderia muito bem ter
escrito que nós acreditamos e daí somos justificados.
Mas isso não foi o que ele escreveu. A realidade objetiva
da redenção, a realidade objetiva da humanidade sendo justificada por Cristo é
uma coisa. A realidade subjetiva de cada pessoa participando neste processo
redentor de justificação já realizado, de sendo realmente “justo” com Deus é
outra dimensão, uma dimensão que requer e se dirige para a composição
espiritual inteira do homem. No próprio texto seguinte São Paulo escreve “pois,
se nós, que procuramos ser justificados em Cristo.” Em 5:5 ele pode escrever
“Porque nós pelo espírito da fé aguardamos a esperança da justiça.” Qual é o
significado ontológico de “esperança de justiça” se “justiça” é “imputada” a
nós como se fosse uma transação legal, e se é a “justiça passiva” de Deus que
nos “justifica”? Não, a visão de São Paulo é muito mais profunda. A “esperança
de justiça” é precisamente a esperança de participar na objetiva “justiça de
Deus” que agora é livremente dada por Deus e através de Cristo. Mas nós “temos
esperança” porque há uma “obra” para nós fazermos para agarrarmos e participar
desta justiça eternamente. Deus cria em Sua liberdade. Deus cria o homem com
essa imagem de liberdade. Cristo aceita a Cruz em liberdade. Liberdade é a base
da criação e da redenção. E a liberdade do homem, ainda que enfraquecida, ainda
pode ser inspirada pelo dom grátis da Graça. E nessa liberdade o homem deve,
como escreve São Paulo em sua Epístola
aos Filipenses 2:12, “operar a sua salvação com temor e tremor.” Não pode
ser negado que as espiritualidades monástica e ascética tomaram isso seriamente.
Em Gálatas 5:1 São Paulo escreve “Estais
pois firmes na liberdade com que Cristo nos libertou.”
O significado teológico total de tudo que teve lugar com
a vinda de Cristo, na Encarnação do Deus-Homem, na Sua vida, Seus ensinamentos,
Sua morte, Sua Ressurreição, Seu estabelecimento da Igreja e a vida sacramental
mística em Igreja, Sua Ascensão, Seu envio do Espírito Santo, e Sua Segunda
Vinda e Julgamento — tudo isto alterou radicalmente a velha lei das obras, e o
significado ficou claro para a Igreja inicial. É verdade que o que São Paulo
diz sobre as “obras da lei” pode ser aplicado por qualquer forma de
Cristianismo que se desvie do fiel da balança, que se desvie das autênticas
“obras do Espírito,” substituindo-as por uma atitude mecânica e mecanicista. E
em Gálatas 3:26-27 São Paulo
imediatamente conecta “justificação pela fé” com o místico sacramento do
batismo. “Porque todos sois filhos de Deus pela fé em Cristo Jesus. Porque
todos quantos fostes batizados em Cristo já vos revestistes de Cristo.” Dentro
deste contexto qual a distinção entre a “justificação pela fé” e o “pela fé”
ser “batizado em Cristo,” e, daí ter sido “revestido de Cristo”?
São Paulo está se dirigindo a Cristãos, a aqueles que
foram batizados, aqueles que aceitaram a fé. Apesar de toda sua linguagem sobre
“justificação pela fé” sobre “ser revestido de Cristo” através do batismo,
sobre o aspecto objetivo da redenção ter sido realizado, São Paulo ainda pode
escrever em Gálatas 4:19 que trabalha
até sentindo dores como de parto “até que Cristo seja formado em vós.” O que
pode isso significar a não ser que o processo redentor do homem é de luta, de
levantamento e queda, de dinamismo espiritual continuo? Em 5:7 ele escreve que
“eles corriam bem” e pergunta “quem vos impediu?” — invocando de novo a imagem
de uma disputa.
Em Gálatas 5:14
São Paulo repete o comando de amor de Cristo, um pensamento não estranho a São
Paulo, especialmente quando se considera seu “Hino ao Amor (Ágape)” em I Coríntios 13. “Porque toda a lei se
cumpre numa só palavra, nesta: Amarás ao teu próximo como a ti mesmo.”
Ele então distingue as “obras do Espírito” das “obras da
carne,” explicitamente ligando estas últimas com a velha lei. E então, ele de
novo exorta e comanda do ponto-de-vista do realismo da vida espiritual. (5:25).
“Se vivemos em Espírito, andemos também em Espírito.” Qual o significado de tal
exortação? Ela tem um significado baseado no realismo somente se o “viver no
Espírito” se referir a totalidade do trabalho redentor objetivo de Cristo agora
realizado e disponível para os homens, uma redenção que circunda os homens pela
vida da Igreja na qual eles vivem, mas uma redenção na qual eles devem
participar ativamente, na qual eles devem “andar,” se quiserem obter e receber a
obra final da redenção, a união do homem com Deus em amor, em bondade, em
verdade.
O “andar” é uma óbvia expressão de atividade, um
movimento para um objetivo. Em Gálatas 6:2
São Paulo liga o comando de amor e o “andar no Espírito” com a “lei de Cristo”
e o “cumprimento desta lei” é teologicamente significativo, pois a “lei de
Cristo” se refere a tudo que foi comunicado à Igreja por Cristo. As vidas
monástica e ascética são precisamente tentativas de cumprir a “lei de Cristo.”
O pensamento conclusivo de São Paulo em Gálatas
é: “paz e misericórdia para todos que andarem conforme esta regra.” A “nova
criação” sobre a qual São Paulo fala é tanto uma realidade redentora já
realizada, quanto, para nós como indivíduos com liberdade espiritual, a “nova
criação” é uma realidade que precisa ser “formada,” uma realidade que só pode
vir através de um processo, quando a realidade subjetiva de cada pessoa é
“formada” na realidade objetiva da “nova criação” lavrada por Nosso Senhor
Jesus Cristo.
Em Efésios 1:13-14 São Paulo usa linguagem extremamente
interessante em relação a nossa “salvação” em Cristo “em Quem nos cremos e
fomos selados com o Espírito Santo da promessa. O Qual é o penhor da nossa
herança, para redenção da possessão de Deus.” O significado aqui está claro: o
selo do Espírito Santo é o “depósito” para uma herança da qual nós tomamos
posse quando nós a adquirimos. É um texto dinâmico. Que a possessão da tal herança
requer que andemos em “boas obras” fica claro em Efésios 2:10: “Porque somos feitura Sua, criados em Cristo Jesus
para as boas obras, as quais Deus preparou para que andássemos nelas.” Em Efésios 6:11 São Paulo de novo usa a
imagem de luta e de se revestir de “toda armadura de Deus.” O “andar” é evocado
de novo em 5:8 e 5:15. “Andai como filhos da luz” “Vede prudentemente como
andais.” Em 5:9 ele escreve que “Porque o fruto do Espírito está em toda a bondade,
e justiça e verdade.” É o “andar na luz” que produz o “fruto de toda a bondade,
e justiça e verdade.” E isto é descrito como “aprovando o que é agradável ao Senhor.”
Em Efésios 5:14
São Paulo cita o que provavelmente era um hino da Igreja inicial, um texto que
tem um toque de motivo monástico nele. “Desperta, tu que dormes.” E para que
propósito deve-se levantar? Em 5:1 ele comanda “Para ser imitador de Deus.” Em
4:23-24 São Paulo escreve que nós devemos “nos renovar no espírito do nosso
sentido.” “E nos revestir do novo homem.” Ele nos roga em 4:1 “andeis como é
digno da vocação com que fostes chamados.” Em 4:15 ele nos exorta a que “cresçamos
em tudo Naquele que é a cabeça, Cristo.” Em 6:18 Paulo enfatiza a importância
da oração. “Orando em todo tempo com toda a oração e súplica...” Todos estes são
aspectos das vidas monásticas e ascéticas.
A Epístola aos Filipenses contém muitas
expressões que se relacionam diretamente com uma vida espiritual ativa. Em 1:25
ele fala de “proveito vosso e gozo da fé.” Em 1:27 ele fala de “portarmo-nos
dignamente conforme o Evangelho de Cristo.” “Estejais num mesmo espírito, combatendo
juntamente com o mesmo ânimo pela fé do Evangelho.” Aqui está o “combatendo”
tão detestado por Nygren.
Para
São Paulo nós somos requeridos não somente a acreditar, mas também a sofrer. Em
Filipenses 1:29 ele escreve: “ou monon to
eis auton pisteuein alla kai to hyper autou paschein.” “Porque a vós foi
concedido, em relação a Cristo, não somente crer Nele, como também padecer por
Ele.” E em 1:30 ele se refere a isto como a um “combate.” Em 2:16 ele fala da
possibilidade de “correr e trabalhar em vão.” Em 3:8 São Paulo fala de “ganhar
a Cristo” e no versículo seguinte mostra que isso vem da “justiça que vem de
Deus pela fé” e não da “justiça que vem da lei.” Filipenses 3:11-16 é um dos textos mais interessantes. “Para ver se
de alguma maneira posso chegar à ressurreição dos mortos. Não que já a tenha
alcançado, ou que seja perfeito; mas prossigo para alcançar aquilo para o que
fui também preso por Cristo Jesus. Irmãos, quanto a mim não julgo que o haja
alcançado; mas uma coisa faço, e é que, esquecendo-me das coisas que atrás
ficam, e avançando para as que estão diante de mim, prossigo para o alvo, pelo
premio da soberana vocação de Deus em Cristo Jesus. Pelo que todos quantos já
somos perfeitos sintamos isto mesmo; e, se sentis alguma coisa doutra maneira,
também Deus vo-lo revelará. Mas, naquilo a que já chegamos, andemos segundo a
mesma regra, e sintamos o mesmo.” Aqui São Paulo fala tanto de “alcançar
Cristo” quanto de “ser preso por Cristo.” A atividade sinérgica é óbvia e realista.
Toda linguagem da passagem indica e sublinha a atividade de Deus e a atividade
do homem, da realidade objetiva de uma redenção completada e do processo do
homem de “alcançar” de “ir para frente” para o objetivo definitivo, um objetivo
inatingível se o homem não se tornar espiritualmente ativo. As estruturas verbais
gregas de “alcançar” e “ser preso” não são sem significado.
Em Filipenses 4:8-9
São Paulo fala universalmente como ele faz em Romanos 1. “Tudo o que é verdadeiro, tudo que é honesto, tudo o que
é justo, tudo o que é puro, tudo o que é amável, tudo que é de boa fama, se há
alguma virtude, e se há algum louvor, nisso pensai.” Estas qualidades — a
verdade, a justiça, a pureza, a amabilidade — não são qualidades que foram
revolucionadas pela nova criação lavrada pela Encarnação do Deus-Homem, elas
não vieram para a existência nem foram revolucionadas pelo pensamento Cristão.
Ao contrário, elas estão dentro da própria textura da natureza e existência
humana, coisas que toda consciência conhece espontaneamente. O que o
Cristianismo fez, no entanto, foi abrir um novo caminho para a humanidade participar
na verdade, na justiça, na pureza por um novo caminho ou com um novo poder
através de Cristo. Elas agora não existem mais como ideais, como o absoluto,
mas estão existencial e ontologicamente acessíveis à natureza humana através da
redenção. São Paulo aqui fala uma linguagem quase Platônica, e no entanto,
ainda inteiramente Cristã.
Na Epístola de São Paulo aos Colossenses 1:22-23
e 29 o realismo da sinergia é pintado. “No corpo de Sua carne, pela morte, para
perante Ele vos apresentar santos, e irrepreensíveis, e inculpáveis, se na
verdade, permanecerdes fundados e firmes na fé, e não vos moverdes da esperança
do Evangelho que tendes ouvido.”
A reconciliação objetiva agora existe mas para dela participar
deve-se ser achado santo, irrepreensível e inculpável, e tudo isso é
contingente ao significativo “se” — “se, na verdade, permanecerdes na fé.” Nos
versículos 28 e 29 nós encontramos as ideias de “perfeição,” “trabalho” e
“combate.” “Para que apresentemos todo o homem perfeito em Jesus Cristo. E para
isto também trabalho, combatendo segundo a Sua eficácia, que obra em mim
poderosamente.” Colossenses 1:10
expressa a mesma ideia de “dignidade,” de “agradar” a Deus, de “frutificar em
toda boa obra,” e de “crescimento no conhecimento de Deus.” Mas o verdadeiro
poder vem do poder da glória de Deus. Em 1:11 “Corroborados em toda a
fortaleza, segundo a força da Sua glória.” Colossenses 2:6-7 expressa também as
duas vontades e atividades espirituais no processo de redenção. “Como, pois,
recebestes o Senhor Jesus Cristo, assim também andai Nele, arraigados e sobre-edificados
Nele, e confirmados na fé, assim como fostes ensinados.”
A profundidade da ideia de sinergia é encontrada não só
em co-morrer e co-sofrer com Cristo, mas também na co-ressurreição com Ele. Em Colossenses 3:1 São Paulo escreve: “Portanto,
se já ressuscitastes com Cristo, buscai as coisas que são de cima.” São Paulo
continua a usar muitas exortações imperativas no capítulo 3. “Mortificai pois
os vossos membros que estão sobre a terra: prostituição, impureza, apetite
desordenado, vil concupiscência, e a avareza, que é idolatria” (5). “Mas agora
despojai-vos de tudo...” (8). E então o comando (4:2) para continuar a orar e
em vigília.
Em I Tessalonicenses São Paulo continua
este segundo aspecto do processo redentor se referindo às “obras de fé” (1:3),
expressando preocupação com o possível “trabalho inútil” (3:5), exortando “Se
estais firmes no Senhor” (3:8), exortando que “a couraça da fé e do amor seja
vestida” (5:8), e comandando para examinar tudo, para reter o bem, e se abster
de toda a aparência do mal. (5:21-22). Em 3:10 São Paulo escreve: “Orando
abundantemente dia e noite ... e supramos o que falta à vossa fé.” Porque a
necessidade de suprir o que falta à fé, se fé “sozinha” é o único critério de
salvação, como é afirmado por certas escola de teologia enraizadas na tradição
da Reforma? Em 4:3-4 São Paulo escreve interessantemente. “Porque esta é a
vontade de Deus, a vossa santificação ... que cada um de vós saiba possuir o
seu vaso em santificação e honra.” O objetivo aqui da vida espiritual em Cristo
é santificação e o texto interessante é “saber como possuir” este “vaso.” Tal
linguagem expressa o dinamismo de um processo sinérgico de redenção. Em 5:9 São
Paulo usa a expressão “aquisição da salvação.” Em II Tessalonicenses 2:14 São Paulo usa a expressão “para alcançardes
a glória de nosso Senhor Jesus Cristo.” Em II
Tessalonicenses 1:11 São Paulo ora para que nós sejamos considerados dignos
do chamado e que nós cumpramos todo “o desejo da Sua bondade, e a obra da fé
com poder.”
Em I Timóteo 1:5-6 nós lemos: “Ora o fim do
mandamento é o amor de um coração puro, e de uma boa consciência, e de uma fé
não fingida. Do que desviando-se alguns, se entregaram a vãs contendas.” Em 1:18-19
a imagem de luta é usada de novo. “Este mandamento te dou, meu filho Timóteo,
que, milites por elas boa milícia, conservando a fé, e a boa consciência, rejeitando
a qual alguns fizeram naufrágio na fé.”
I Timóteo 2:1-4
tem a mesma intensidade de atividade espiritual que é encontrada na literatura
monástica e ascética: “Admoesto-te pois, antes de tudo, que se façam
deprecações, orações, e ações de graças por todos os homens. Pelos reis, e por
todos os que estão em eminência, para que tenhamos uma vida quieta e sossegada,
em toda a piedade e honestidade. Porque isto é bom e agradável diante de Deus
nosso Salvador, Que quer que todos os homens se salvem, e venham ao conhecimento
da verdade.” A mesma ênfase continua em 4:7-10 especialmente as expressões
“exercita-te a ti mesmo” e “porque para isto trabalhamos e lutamos.” I Timóteo 6:12 de novo enfatiza a
“militância,” e o “tomar posse” daquilo que foi objetivamente realizado na redenção.
“Milita a boa milícia da fé, toma posse da vida eterna.” E no verso precedente
a este é comandado “a seguir a justiça, a piedade, a fé, o amor, a paciência, a
mansidão.” Que significado espiritual pode ter “seguir a justiça” a menos que
isto indique que, apesar da “justiça de Deus” estar estabelecida em Cristo
Jesus, nós ainda temos que lutar ativamente em luta espiritual para “tomar
posse” desta justiça. Já em I Timóteo
5:9 fica claro que “viúvas” de uma certa idade tinham um lugar especial dentro
da vida espiritual da Igreja. “Que a viúva seja inscrita.” Inscrita em que? É obviamente
para uma atividade especial dentro da vida espiritual da Igreja que as viúvas
eram inscritas, já uma forma especial de atividade espiritual na vida mais
inicial da Igreja.
Em II Timóteo
2:6 tanto a realidade objetiva do dom da redenção, quanto o trabalho individual
subjetivo necessário para “tomar posse” dessa obra redentora ficam claramente
aparentes. “Eu te lembro que despertes o dom de Deus que existe em ti.” A sinergia
da redenção é mencionada em 2:11-12 com o muito significativo “se.” “Que, se morrermos com Ele, também com Ele
viveremos; se sofrermos, também com
Ele reinaremos.” Em 2:21 a santificação é contingente à autopurificação: “De
sorte, que se alguém se purificar ...
será vaso para honra, santificado.” Em 2:22 de novo somos exortados a “fugir
dos desejos da mocidade” e seguir a “justiça, fé, amor e a paz” e o “chamado do
Senhor” deve ser feito “com um coração puro.” Em 4:7 o caminho da salvação é,
de novo, apresentado como um combate. “Combati o bom combate, acabei a
carreira, guardei a fé.”
A Epístola
aos Hebreus é rica em seu pensamento sobre ambos os aspectos da redenção —
na obra de Deus, e no combate espiritual por parte do homem. Em 3:14 a linguagem
é espantosa. “Nos tornamos participantes de Cristo, se retivermos firmemente o
principio de nossa confiança até o fim.” Em 4:1 a ideia é similar. “Temamos,
pois que, porventura, deixada a promessa de entrar no seu repouso, pareça que
algum de vós fica para trás.” A ideia de “entrar nesse repouso” continua em 4:11.
“Procuremos pois entrar naquele repouso, para que ninguém caia no mesmo exemplo
de desobediência.” Em 6:1 o “inicio” do processo é mencionado, acompanhado pela
exortação: “prossigamos até a perfeição.” Em 6:11 deve-se mostrar cuidado “até
o fim, para completa certeza da esperança.” As mesmas exortações de se “fazer
alguma coisa” são encontradas ao longo de todo Hebreus. Em 10:22-23 está: “Cheguemo-nos com verdadeiro coração” e
“Retenhamos firmes a confissão da nossa esperança.”
Em
11:1 é proferida uma definição de fé: “Ora, a fé é o firme fundamento das
coisas que se esperam, e a prova das que não se veem.” Essa definição de fé é
com frequência dispensada muito rapidamente. É uma ideia profunda,
especialmente quando considerada na sua estrutura grega original. Fé é a “base,”
a “realidade” sobre a qual a “esperança” da fé Cristã é construída. E em sua
realidade ela contém a própria prova, a evidência do reino do céu. O capítulo
onze inteiro revela que a fé foi ativa sob a “velha lei,” apesar da fé de e em
Cristo ter um significado ontológico mais profundo exatamente porque é a base
de uma nova realidade não disponível sob a “velha lei.” Depois de uma longa
exposição de exemplos de “fé’ sob a “velha lei,” a Epístola aos Hebreus em 12:1 se engaja em uma exortação que se
refere a própria atividade espiritual da nova fé. “Deixemos todo o embaraço, e
o pecado que tão de perto nos rodeia, e corramos com paciência a carreira que
nos está proposta.” A realidade da “correção” e “disciplina” é enfatizada em Hebreus, especialmente em 12:7-8: “Se
suportais a correção.” E que se pode “cair da graça de Deus” está claro em
12:15.
Em I Pedro 1:9 não é o inicio da fé ou fé
em geral que resulta em salvação, mas é precisamente o “fim da fé” que “obtém”
salvação. Purificação e obediência são temas dominantes em I Pedro. “Purificando as vossas almas na obediência à verdade, para
amor fraternal, não fingido; amai-vos uns aos outros com um coração puro” (1:22).
O processo de crescimento na vida espiritual é enfatizado em 2:2: “... para que
por ele vades crescendo.” A “guerra” entre concupiscências carnais e a alma é
mencionada em 2:11 “Amados, peço-vos como a peregrinos e forasteiros, que vos
abstenhais das concupiscências carnais que combatem contra a alma.” Em II Pedro 1:4 é expresso um pensamento
teológico profundo. As promessas que Deus fez são grandes e preciosas;
corrupção está no mundo por causa da concupiscência; e o homem pode não só escapar
dessa corrupção, mas também se tornar participante na natureza Divina, uma ideia
que se desenvolve no inicio do Cristianismo, e no pensamento teológico da
Igreja Ortodoxa Oriental, uma ideia que lança as bases para a doutrina da theosis, da divinização. “Pelas quais
Ele nos tem dado grandíssimas e preciosas promessas, para que por elas fiqueis
participantes da natureza Divina, havendo escapado da corrupção, que pela
concupiscência há no mundo.” Precisamente por causa disso nós somos instruídos
nos versículos seguintes a suplementar
nossa fé, e então, o dinâmico processo de crescimento espiritual é
apresentado. “E vós também, pondo nisto mesmo toda diligência, acrescentai à
vossa fé a virtude, e à virtude a ciência, e à ciência temperança, e à
temperança paciência, e à paciência piedade, e à piedade amor fraternal, e ao
amor fraternal amor.”
Em II Pedro 1:10 há menção a uma “vocação”
e eleição.” E, no entanto, no mesmo texto se é exortado a ser “cada vez mais
firme” para exatamente fazer essa “vocação e eleição” mais firmes. E em 2:20-22
o desvio do “caminho da justiça” não só é possível, como de fato ocorre, e é
pior esse estado do que aquele de quem não tivesse conhecido o “caminho da justiça”
de todo. E o texto fala daqueles que têm “um conhecimento de Deus.” “Porquanto
se, depois de terem escapado das corrupções do mundo, pelo conhecimento do
Senhor e Salvador Jesus Cristo, forem outra vez envolvidos nelas e vencidos,
tornou-se-lhes o último estado pior do que o primeiro. Porque melhor lhes fora
não conhecerem o caminho da justiça, do que conhecendo-o, desviarem-se do santo
mandamento que lhes fora dado.”
Nas
três epístolas de São João nós encontramos a mesma linguagem, a mesma realidade
dos dois aspectos da redenção. Os mesmos “ses” estão nelas, a mesma ênfase de
purificação (ver I Jo 3:3), a mesma linguagem de “agradar a Deus,” e a mesma
ênfase em “manter os comandos” e “não pecar.” Há uma ligação orgânica entre
amar a Deus e manter os Seus comandos — o conjunto completo dos comandos de
Cristo.
A avaliação de Lutero da Epístola de São Tiago é bem conhecida.
De fato, Lutero posicionou não só Tiago no fim da Bíblia Alemã, mas também Hebreus, Judas e Apocalipse. E seu
critério é que nessa peças faltava pureza evangélica. Ele não foi o primeiro a
fazer isso. Seu colega em Wittenberg, para quem mais tarde Lutero se virou,
Carlstadt, havia distinguido entre s livros do Novo Testamento — e do Velho
Testamento — antes que Lutero realizasse suas próprias ações. Ainda em 1520
Carlstadt dividiu toda Escritura em três categorias: libri summa dignitatis, nos quais Carlstadt incluiu o Pentateuco
assim como os Evangelhos; libri segundae
dignitatis, nos quais ele incluiu os profetas e quinze epístolas; e libri tertiae dignitatis.
Lutero
rejeitou a Epístola de São Tiago
teologicamente, mas por necessidade a manteve na Bíblia Alemã, ainda que como
um tipo de apêndice. O fim do Prefácio de
Lutero para sua edição da Bíblia Alemã, que foi omitido em edições posteriores,
fala no alemão de sua época; .”.. por essa razão a Epístola de São Tiago é uma epístola totalmente desimportante, pois
ela não tem mérito evangélico.” Lutero a rejeitou teologicamente “porque ela dá
mérito para obras em flagrante contradição com Paulo e todo resto da Escritura
... porque, enquanto empenhada em ensinar pessoas Cristãs, ela não menciona
nenhuma vez a paixão, a ressurreição, o Espírito de Cristo; ela menciona o nome
de Cristo duas vezes, mas não ensina nada sobre Ele; ele chama a lei de lei da
liberdade, enquanto Paulo a chama de lei de escravidão, de ira, de morte e de
pecado.”
Lutero até mesmo incluiu a palavra “sozinha” — allein — em Romanos 3:28 depois de “pela
fé” exatamente para contradizer as palavras de Tiago em 2:24: “Vedes então que
o homem é justificado pelas obras, e não somente pela fé.” Além disso, e mais
importante, é que Lutero foi muito agressivo e arrogante em sua resposta às críticas
de que lê tinha acrescentado “sozinho” algo no texto Bíblico: “Se teu papista faz
muito reboliço inútil sobre a palavra sozinha,
allein, diga a ele de uma vez: “O Doutor Martinho Lutero a manterá assim, e
diz: papistas e burros são uma só coisa; sic
volo, sic jubeo, sit pro ratione voluntas. Pois nós não queremos ser alunos
e seguidores dos Papistas, mas sim seus mestres e juízes.” Lutero continua de
maneira zombeteira tentando imitar São Paulo em sua resposta a seus oponentes.
“São eles doutores? Também sou. São instruídos? Também sou. São pregadores?
Também sou. São Teólogos? Também sou. São filósofos? Também sou. São escritores
de livros? Também sou. E ainda posso alardear: eu posso expor Salmos e
Profetas, o que eles não podem. Eu posso traduzir, o que eles não podem... Portanto,
a palavra allein permanecerá em meu
Novo Testamento, e apesar de todos papa-burros ficarem furiosos e doidos, eles
não tirarão a palavra.” Em algumas edições alemãs a palavra allein foi impressa em tipos maiores!
Alguns críticos da tradução de Lutero o acusaram de traduzir deliberadamente
sem exatidão para apoiar sua visão teológica. Já em 1523 o Dr. Emser, um oponente
de Lutero, afirmou que a tradução de Lutero “continha mil erros gramaticais e
mil e quatrocentos erros heréticos.” Isso é exagerado, mas permanece o fato de
que existem numerosos erros na tradução de Lutero.
Na verdade, toda Reforma em sua atitude para com o Novo
Testamento é diretamente oposta ao pensamento sobre esse assunto do
Bem-Aventurado Agostinho, que era estimado em muitos aspectos pelos teólogos da
Reforma e, de onde eles tiraram a base para algumas visões teológicas,
especialmente predestinação, pecado original e graça irresistível para Lutero e
Calvino. Nesse assunto, como em alguns outros, não há base comum entre Lutero e
Calvino de um lado e Bem-Aventurado Agostinho do outro. Este escreveu: “Eu não
teria acreditado no Evangelho, se não tivesse sido movido pela autoridade da
Igreja.” Deve ser mencionado que Calvino não fez objeção à Epístola de São Tiago.
Lutero esteve tão preso na abstração de uma justiça
passiva, tão enfurecido por sua experiência como monge praticando aquilo ao
qual ele se referiria como “justiça de obras,” tão envolvido em tentar criar um
significado específico para uma linha de pensamento de São Paulo, que ele
perdeu a própria base de onde veio o pensamento teológico de São Tiago — que é
a iniciativa e vontade de Deus. A crítica de Lutero de que São Tiago não menciona
a paixão, a ressurreição e o Espírito de Cristo é imbecil, pois seus leitores
conheciam o depósito apostólico — não havia necessidade de mencionar a base e
essência da fé viva que eram conhecidas por aqueles que liam as epístolas. Tal
crítica por Lutero revela a enorme falta de senso pela vida histórica da Igreja
inicial, pois a Igreja tinha existência e foi da Igreja e para a Igreja que as
epístolas foram escritas. Historicamente a Igreja existe desde antes que
qualquer texto da “Nova Aliança” tivesse sido escrito. A Igreja existiu na
tradição oral recebida dos apóstolos, como está claramente revelado nas páginas
do próprio Novo Testamento.
A própria base da visão teológica de São Tiago é a vontade de Deus. Em 1:17-18 São Tiago
escreve: “Toda a boa dádiva e todo o dom perfeito vem do alto, descendo do Pai
das luzes, em Quem não mudança nem sombra de variação. Segundo a Sua vontade,
Ele nos gerou pela palavra da verdade, para que fôssemos como primícias de Suas
criaturas.” Em 4:15 São Tiago escreve: “Em lugar do que devíeis dizer: se o Senhor
quiser e se vivermos, faremos isso ou aquilo.” Um texto teologicamente fraco na
Epístola de São Tiago está em 4:8:
“Chegai-vos a Deus, e Ele Se chegará a vós.” Tomado de per si tem um toque
Pelagiano. E na literatura monástica e ascética se encontra com frequência tais
expressão. Mas o significado tanto na epístola quanto na literatura monástica e
ascética deve ser compreendido dentro do
contexto total. Uma vez que a sinergia do processo redentor tem lugar no
coração do homem, então a reciprocidade existencial da graça e resposta é tão
dinâmica que se pode, como se fosse, usar tais expressões, precisamente porque está
assumido que Deus iniciou e que a graça está sempre trabalhando no coração do
homem, em toda profundidade do interior do homem assim como na vida exterior. O
texto na Epístola de São Tiago deve
ser entendido no contexto de 1:18 e 4:15. Além disso, tem que ser notado que
este texto é precedido por “Sujeitai-vos pois a Deus....” Estando “sujeito a
Deus,” uma relação já está posta, uma relação que pressupõe a iniciativa de
Deus e a resposta do homem.
A Epístola de São Tiago contém muitas expressões que serão
usadas na vida monástica e ascética. Tentação (1:14), paixões (4:1),
purificação, limpeza, auto-humilhação (4), e “lamentar e chorar pelas misérias”
(4:9). As palavras esfoladoras contra os ricos (5:1-6) fundamentam o voto de
pobreza monástico.
A vida da Igreja inicial como descrita nos
Atos dos Apóstolos é tão clara que
não é necessária análise ou apresentação de texto para demonstrar que no
essencial exista uma forma de espiritualidade similar ao do Cristianismo
monástico e ascético. Deve-se também fazer menção à vida de São João Batista:
“É em base sólida que um estudante das origens monásticas como Dom Germain
Morin sustenta seu aparente paradoxo: não foi tanto a vida monástica que foi
uma novidade no final do século três e inicio do século quatro, mas sim a vida
de adaptação ao mundo conduzida pela massa dos Cristãos ao tempo em que a
perseguição cessou. Os monges, na verdade, não fizeram nada, a não ser
preservar intacta, no meio de circunstâncias alteradas, o ideal da vida Cristã
dos primeiros dias... E há uma outra cadeia contínua, dos apóstolos para os
solitários e destes para os cenobitas, cujo ideal, o menos comum que possa
parecer, se espalhou tão rapidamente dos desertos egípcios no final do século
três. Essa cadeia é formada por homens e mulheres que viveram em continência,
ascetas e virgens, que nunca cessaram de serem mantidos em honra na Igreja
antiga.”
*** *** ***
De Collected Works of
Georges Florovsky, Vol. X, Byzantine Ascetic and Spiritual Fathers
(Vaduz, Europa: Buchervertriebsanstalt, 1987), pp. 17-59. Esse mesmo capítulo
está duplicado no Vol. XIII pgs. 102-103. Padre Georges colocou o texto grego
do Novo Testamento depois de quase todas as passagens citadas. Para o propósito
de disseminação pela Internet eu deletei as passagens gregas. Esse capítulo tem
direito de cópia, apesar do livro estar fora de impressão.
* Para o tratamento por uma
fonte primária do conceito de que a graça de Deus faz um justo ver Sobre a
Encarnação do Verbo de Deus por Santo Atanásio o Grande. Aqui está um
importante excerto sobre este conceito:
Pois não eram coisas sem ser que necessitavam salvação,
pois para isso um simples comando seria suficiente, mas o homem, já com
existência, estava indo para a corrupção e para a ruína. Era então natural e
justo que o Verbo usasse um instrumento humano e Se revelasse por toda parte.
Em segundo lugar, vós deveis saber também disso, que a corrupção que foi posta
não era exterior ao corpo, mas se tornou ligada a ele; e foi requerido que, ao
invés de corrupção, a vida se ajustasse a ele; para que, assim como a morte
fora engendrada no corpo, também a vida pudesse ser engendrada nele. E como a
morte era externa ao corpo, seria apropriado para a vida também ser engendrada
externamente a ele. Mas se a morte estava inserida muito próxima do corpo e o
estava dirigindo como se estivesse unida com ele, era necessário que a vida
também fosse inserida muito próxima do corpo, para que o corpo, assumindo vida
ao invés de morte, afastasse a corrupção. Além disso, ainda que supuséssemos
que o Verbo tivesse vindo fora do corpo, e não nele, a morte teria de fato sido
derrotada por Ele, em perfeita harmonia com a natureza, porque a morte não tem
poder contra a Vida; mas a corrupção ligada ao corpo teria permanecido nele,
sem nenhuma diminuição. Por essa causa, o Salvador razoavelmente Se colocou num
corpo, para que aquele corpo, se tornando muito próximo da Vida, não mais, como
mortal, habitaria na morte, mas tendo posto a imortalidade em si, daí para
frente levantaria de novo e permaneceria imortal. Pois como ele tinha posto a
corrupção, ele não poderia levantar de novo a menos que pusesse a vida. E,
igualmente, a morte, por sua natureza não poderia aparecer, a não ser no corpo.
Por isso Ele pôs um corpo, para que pudesse achar a morte
no corpo, e apagá-la. Pois como poderia o Senhor ter provado, de todo, ser a
Vida, se Ele não tivesse vivificado o que era mortal? Pois, assim como a palha
é naturalmente destrutível pelo fogo, supondo que um homem a mantenha longe do
fogo, ainda que não queime, ainda assim a palha permanece, por tudo isso, como
simples palha, temerosa da ameaça do fogo — pois o fogo tem a propriedade
natural de consumi-la; enquanto se o homem fechar a palha dentro de uma
quantidade de asbestos, a substância que se diz ser um antídoto para o fogo, a
palha não mais temerá o fogo, estando segura por seu envolvimento por um
material incombustível; dessa mesma maneira pode-se dizer, em relação ao corpo
e à morte, que se a morte fosse mantida fora do corpo por um simples comando de
Sua parte, ele não seria menos mortal e corruptível, segundo a natureza dos
corpos; mas, para que isso não fosse assim, o corpo vestiu o incorporal Verbo
de Deus, e assim não mais temerá morte ou corrupção, pois ele tem a vida como
vestimenta e a corrupção está abolida nele (capítulo 44).